sábado, março 10

Acerca dos livros

Quando Laplace publicou o seu famoso tratado 
sobre as órbitas dos planetas ofereceu um exemplar a Napoleão que, depois de o ler, lhe perguntou:

– E Deus?

Laplace respondeu:

– Sire, não tive necessidade de incluir essa hipótese.

Sempre que me lembro deste pequeno diálogo, e volta e meia lembro-me, a minha cabeça começa a funcionar numa data de sentidos. A cabeça sempre foi para mim um órgão misterioso. Refiro-me à minha, claro. Não faço ideia como funciona, porque funciona, o que passa dentro dela e, a maior parte das vezes

(qual maior parte, todas)

sinto-me a assistir ao seu trabalho, quase sempre mais de fora que de dentro

(não é isto mas não sei bem como explicar, ao mesmo tempo espectador, vítima e participante)

e em muitas ocasiões espanta-me a sua lógica, o seu trabalho, as suas conclusões. Diante delas tento fazer o caminho na direção inversa, o que me é difícil, com a mistura de partes lógicas com partes afectivas, e procuro não tomar decisões, ou resoluções, ou partidos acerca daquilo que ela me apresenta. Claro que ela sou eu mas a minha cabeça não vai de A para B, de B para C, etc: vai de A para F sem que eu entenda bem como e, para a entender melhor, seria necessário fazer o caminho inverso. Em geral acabo por aceitar assim porque ir de F para E é uma trabalheira. Isto não tem nada que ver com um patetinha iluminado, tem apenas que ver com deixar o inconsciente

(para usar o termo de Freud que me parece, no mínimo, discutível)

elaborar à vontade, livre de críticas conscientes

(com o termo consciente já estou mais de acordo se bem que não totalmente)

como, por exemplo, nos filmes de Fellini em que os nexos são sempre afectivos e por isso foi tão importante para mim enquanto escritor, ou com o verso de Paul Fort

laisse penser tes sens
Susa Monteiro
(deixa os teus sentidos pensarem)

que tão vitais foram para mim como técnica literária, como o foram Charlie Parker, Coltrane, outros grandes saxofonistas, como o foi a música de Bach, sobretudo as Variações Goldberg, ou alguns quadros Rothko. Afigura-se-me que o meu modo de escrever se parece com aquela história de Picasso em que lhe perguntaram como é que ele pintava. Picasso respondeu

– Primeiro sento-me.

O sujeito da pergunta admirou-se

– Não sabia que você pintava sentado

e Picasso disse

– Não, eu pinto de pé.

Eu, para trabalhar, primeiro sento-me também. Depois fico à espera. Depois ponho o bloco à frente. Depois continuo à espera. Depois apanho uma esferográfica ao acaso de uma das canecas. Depois continuo à espera. Depois aparece uma frase confusa. Não lhe ligo. Depois a frase confusa começa a perder palavras. 
Depois, quando já tem poucas, informa-me

– Podes começar

e, ao começar, surge o livro inteiro, excepto, inevitavelmente, dúvidas quanto aos três capítulos finais, que se vão alterando à medida que o livro avança. É nisso que estou agora; e é engraçado porque tudo fica, ao mesmo tempo, iluminado e na sombra. São as últimas palavras que puxam as seguintes. E depois chega o fim do livro. 
E depois corrigir tudo, não a estrutura, a prosa. Há momentos em que escrevo como se levitasse, há momentos em que o material se arrasta. Mas é a primeira parte do trabalho que é mais difícil. O resto do material surge com muito mais facilidade, as frases engrenam melhor, tudo parece colocar-se nos sítios certos, à leitura, está de facto nos sítios certos e vem-me a impressão que escrevo melhor que eu. E depois a pergunta, a que não respondo nem me interessa responder: de onde vem isto tudo? Claro que tem de vir de dentro de mim, mas como? Não procuro respostas. Aceito. Da mesma maneira que não penso nos problemas técnicos: resolvo-os. Isto é, resolvem-se sozinhos. O livro sabe melhor que eu aquilo de que necessita, já não precisa muito da minha ajuda, precisa apenas que eu o siga. Uma vez acabado e corrigido não volto a ele. Nunca li nenhum: são como os tempos idos aos quais não posso voltar. Mas, se por acaso, por acaso não, se abre uma página qualquer e leio uma frase está tudo certo. Era aquilo. É aquilo. Recordo-me da frase de Bocage, poeta que admiro muito:

– Isto é meu, isto não morre.

E não morreu de facto. Se em vez da internet as pessoas lessem os nossos grandes autores, de Fernão Lopes ao século XVIII, viviam melhor. Porque uma coisa bela é uma alegria para sempre. Disse Keats. Uma grande alegria para sempre e a nossa vida ganha uma dimensão diferente. Sou muito grato aos nossos escritores. Ao acaso, a prosa de D. Francisco Manuel de Melo, de Herculano, de Garrett, por exemplo, de quem Herculano dizia que por meia dúzia de moedas era capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita. E, como Laplace, não temos necessidade de incluir a hipótese de Deus. Com Esse entendo-me eu de outra maneira. Embora me zangue imenso com Ele de maneira geral damo-nos bem, apesar dos nossos arrufos. E peço desculpa de não conseguir perdoar-Lhe que me tire pessoas de quem gosto. Mas, como diz o Bento, andam por aí, sempre podemos dizer

– Olá

e tudo continua na mesma.

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