quarta-feira, março 14

A canção de Slimani

A literatura é mais necessária que nunca em um mundo que quer transformar tudo em uma superfície lisa
Leila Slimani, escritora marroquina 









O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico as­egurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbu­galhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha bati­do com violência contra a cômoda azul.

Fotografaram a cena do crime. A polícia colheu digitais e mediu a área do banheiro e do quarto das crianças. No chão, o tapete de princesa estava empapado de sangue. O trocador estava meio virado. Os brinquedos foram levados em sacos transparentes e lacrados. Até a cômoda azul será usada no processo.

A mãe estava em choque. Foi o que disseram os bombei­ros, o que repetiram os policiais, o que escreveram os jorna­listas. Ao entrar no quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito das profundezas, um uivo de loba. As pa­redes tremeram. A noite se abateu sobre esse dia de maio. Ela vomitou e a polícia a descobriu assim, com a roupa suja, agachada no quarto, soluçando como uma desvairada. Ela uivou até arrebentar os pulmões. O enfermeiro fez um sinal discreto com a cabeça e eles a ergueram, apesar de sua resis­tência, de seus chutes. Eles a levantaram devagar e a jovem residente do samu lhe deu um calmante. Era seu primeiro mês de estágio.

Também foi preciso salvar a outra. Com o mesmo profis­sionalismo, com objetividade. Ela não soube morrer. Ela só soube provocar a morte. Ela seccionou os dois pulsos e cravou a faca na garganta. Perdeu a consciência ao pé do berço. Eles a colocaram em pé, tomaram seu pulso e sua pressão. Eles a puseram na maca e a jovem estagiária comprimiu seu pesco­ço com a mão.

Os vizinhos se reuniram na frente do prédio. Principal­mente as mulheres. É quase hora de ir buscar as crianças na escola. Elas olham a ambulância com os olhos inchados de lá­grimas. Choram e querem saber. Ficam na ponta dos pés. Ten­tam descobrir o que acontece atrás do cordão de isolamento, no interior da ambulância que arranca com todas as sirenes li­gadas. Cochicham informações umas para as outras. O rumor já corre. Algo de ruim aconteceu com as crianças.

É um belo prédio da rue d’Hauteville, no décimo arrondis­sement. Um prédio onde os vizinhos se cumprimentam, sem se conhecer, com bons-dias calorosos. O apartamento dos Massé fica no quinto andar. É o menor apartamento do edi­fício. Paul e Myriam ergueram uma divisória no meio da sala quando o segundo filho nasceu. Eles dormem em um cômodo apertado, entre a cozinha e a janela que dá para a rua. Myriam gosta de móveis chineses e tapetes marroquinos. Na parede, ela pendurou gravuras japonesas.

Hoje ela voltou mais cedo. Encurtou uma reunião e deixou para o dia seguinte a análise de um dossiê. Num assento re­trátil no metrô da linha 7, ela pensava em fazer uma surpresa para os pequenos. Chegando, passou na padaria. Comprou uma baguete, uma sobremesa para as crianças e um bolinho de laranja para a babá. O favorito dela.

Pensava em levá-los ao carrossel. Eles iriam juntos fazer as compras para o jantar. Mila pediria um brinquedo, Adam chuparia uma casquinha de pão sentado no carrinho.

Adam está morto. Mila não vai resistir.

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