segunda-feira, janeiro 8

Yes, temos doutores

De vez em quando, ouço ou leio aqui e ali relatos de turistas brasileiros que, nos Estados Unidos, entram numa lojinha qualquer, dessas bem despretensiosas e corriqueiras, e se surpreendem ao descobrir, na conversa com o atendente, que ele é um advogado, ou um economista, ou um professor – quase sempre com diploma de uma daquelas universidades cujo nome jamais se pronuncia sem reverência. Já seria estranho se o bem-falante personagem fosse o dono da loja – e é essa pergunta que o brasileiro frequentemente faz, para ouvir o homem descartar a honra: não, só empregado mesmo.

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Narrações desse tipo me deixavam meio complexado até o dia, na semana passada, em que encontrei aqui no meu bairro um brasileiro apto a provocar em qualquer californiano ou nova-iorquino em visita ao nosso país espanto igual ao causado por aqueles seus compatriotas capazes de preparar um sanduíche para um freguês enquanto discorrem sobre a contribuição de Philip Roth para o erotismo literário contemporâneo.

Não sei que diploma ostenta na sala esse fenômeno, mas ele deve ter um. Um ou mais, a julgar pelas palavras que o ouvi pronunciar diante dos abacaxis madurinhos que exibia numa calçada da Avenida do Cursino e pretendia vender a um homem que, apesar do calor, estava de chapéu e casaco.

Eu tinha passado por sua tendinha improvisada, porque nem ele nem os abacaxis me haviam chamado particularmente a atenção, quando o vento trouxe a mim este final de frase:

“… meramente circunstancial…”

Qualquer dessas palavras, sozinha, já me faria parar, como parei, espantado. As duas, juntas, provocaram em mim alguma coisa parecida com estupor. Olhei de longe para o homem a quem haviam sido ditas, mas ele não parecia espantado como eu. Pensei, então, que tudo tivesse sido uma brincadeira de minha imaginação e resolvi caminhar para casa. Ainda fui alcançado por outro final de frase:

“… uma perfeita síntese da modernidade.”

Olhei para trás. O interlocutor ainda era o senhor empertigado de chapéu e casaco. Ele continuava ali, completamente imóvel como estava um minuto antes, e o pensamento que me ocorreu pode parecer absurdo agora, mas não o achei despropositado naquele momento: aqueles termos extravagantes, saídos dos lábios de um vendedor de abacaxi, tinham transformado o freguês em estátua.

Antes que mais duas ou três daquelas inacreditáveis expressões me imobilizassem também, tratei de me afastar. Uma ideia me veio e quase eu a disse em voz alta, como um desagravo: o que esses Estados Unidos pensam que são?

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