terça-feira, dezembro 26

Perfeita natureza desfeita

yesterdaysprint:
“Higher Education, Webster Murray, 1926
”
Webster Murray
Uma borboleta é melhor do que inúmeras palavras. Tanto é a afeição que tenho por elas que qualquer uma recebe-me com delicadeza. Considero que essa surpresa do ar é pura curtição da natureza que se reinventa com o brilho da estação. Quando acontece o seu encontro com a flor certamente esta é a vida do ar, a de beijar e amar. Tremor de asas sedosas, perfume em carícia de lenço, eis que aqui esplende com o seu minúsculo lirismo um lindo amor.

A borboleta brinca com os raios de sol na roseira, como disse o poeta Firmino Rocha, mal a manhã desperta. Fundamental é o amanhecer, que a esta hora os ponteiros do relógio do tempo não marcam o passado, o presente e o futuro, pois o que importa é extrair o néctar do amor em que somos apenas os convidados.

Em bando, as borboletas enfeitavam os verdes da grama no barranco, que dava para o rio. Voavam acima das águas, forjavam o balé de séculos na manhã luminosa, ofertavam o espetáculo que impregnava os meus olhos de encanto e beleza. Naturalmente uma canção suave as conduzia, uma fábula ali havia na dança que contava a história da inocência tecida com a seda que adornava o dia. O traje que nesse instante eu usava era o da vida com pureza e alegria.

Os passarinhos saltitavam nos ramos da primavera. Costumavam, bicar as manhãs ardentes do verão. A melhor receita para afastar a tristeza, se é que existia, estava no canto do sabiá. De tanto ouvir esse músico divino, de repente virava um passarinho. Lá fora, gotas da manhã repercutiam no orvalho com o meu canto sedento de afeto. Assíduo, daqui a instante, lá estava junto à mangueira onde os raios de sol fabricavam aranhas, que desciam e subiam pelo tronco com suas patas de ouro.

O verde de todas as chuvas escorria em chão de infância, amado nas flores ideais. O verde de todos os ventos brincava na várzea intensa de eterna paz. O verde no voo dos pássaros convidava para que fôssemos receber o vento com a sua aragem feita de rações iguais. O verde de todos os sóis ofertavam doces geografias, que se tornavam possíveis graças à sua armadura de colheitas matinais. Tinha a sensação de que eu saía em algazarra dos quintais frutíferos, espalhados na pequena cidade, e ia pousar nas nuvens de onde, carregado de verde, molhava o mundo fero e solitário pelos quatro cantos cardeais.

Deparava-me com uma garça em cima da pedra, fazendo uma pose pernalta para a foto de noiva. Alçava voo no azul , eternas de amor as asas, deslizava com brancura e graça. Para norte ou sul voava, voava, mas sempre voltava. Era aquela, entre todas as alvuras da manhã translúcida, a minha garça preferida, a mais elogiada.

Entrava ano, saía ano, as estações estáveis temperavam o tempo generoso, que me levava pela campina com suas mãos de música.

Viver não era preciso, conviver com a natureza, sim, sabia disso quando afoito percorria as ruas do mato. Passados tantos anos, lembro algumas aventuras de antigamente, no chão em que os frutos de ouro caíam aos montes e no lugar deles os verdes brotavam. O prazer estava lá. E porque era cantante recuso-me agora na travessia da última etapa da vida não ter as flores de ontem, quem tanto amor viveu não concebe esses passos tristes, essa mudança na paisagem onde tomba a aurora. O rio morre de sede, a terra debaixo da nuvem que tosse. Esse vento que sopra ameaças com o seu hálito cortante, zombador, dizendo que como apenas uma arma do crime, verso do bicho único, insano, o tudo pode ser o nada.

Sofredor de um mal, que despreza a natureza com fragrâncias, a vida nomeia um animal soberbo como o orgulho incansável da sanha na fauna e na flora. Sorridente de novo com a arma engatilhada, quanto mais a vítima ele soubesse onde mora.

Cyro de Mattos

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