sexta-feira, novembro 3

O galo

Quando eu era menino, acordando cedo de madrugada, ouvia o galo cantar longíssimo, o canto forte diluía-se na distância, talvez viesse das abas redondas de Chapéu d’Uvas, ou das praias que eu imaginava no Mar de Espanha, sei lá, no cornimboque do diabo.

Nesse tempo não existiam galos no nosso terreiro.

Até que um dia lá chegou um galo soberbo, fastoso, corpo real, portador de plumagem azul-verde-vermelha. Seu canto era agressivo: napoleônico. Os galos da distância cederam o passo a este outro próximo, tocável, fichável. Aproximei-me muitas vezes do galo, testando-o; ele baixava a cabeça para examinar-me, conferenciava com as galinhas-d’angola, bicando qualquer grão ou cisco; depois voltava a mim, levantando já agora a cabeça para marcar sua superioridade, talvez de tribuno, barítono, boxeador; desafiando-me a quê com a crista? O galo me atraía e repelia; eu receava que me bicasse, ou que me disparasse um jato de dejeções. Embora admirando-os, nunca me senti muito à vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por exemplo a begônia e o maracujá causavam-me receio. Desde o começo a natureza pareceu-me hostil.


Um dia abeirei-me do galinheiro manejando um bilboquê diante do galo; quis mostrar-lhe que o dominava, que ele seria incapaz de jogar bilboquê, jogo da moda. O galo farejou o objeto; julgando-o certamente esotérico sacudiu a plumagem, empinou a crista, abanou a cabeça rindo, um riso voltairiano, adstringente.

Polígamo que era, atacou à minha vista, alternativamente, duas galinhas carijó, cobrindo-as, contundente, claro que para me fazer despeito. Atirei o bilboquê ao chão, arma inútil, vencida.

Declarou-se o estado de guerra fria entre as duas potências. Eu não perdoava ao galo que seu canto eclipsasse o outro, longínquo, dos galos de talvez Chapéu d’Uvas ou Mar de Espanha. Minha ojeriza aumentou ao recordar-me que o galo denunciara São Pedro na noite da entrega de Jesus Cristo à polícia.

Tratava-se portanto de um espoleta, raça de gente que sempre odiei. Chegando a situação ao clímax, decidi atuar. Uma tarde penetrei precípite no galinheiro, marchando para o adversário; fora de mim, transtornado, ignorante de que o galo era um dos bichos consagrados a Apolo, sem rodeios nem consideração pela sua caleidoscópica plumagem, a raiva aumentando-me a força, estrangulei-o, pisando-lhe ainda as esporas. Satisfeito, reconciliado comigo mesmo, senti num relâmpago o prazer concreto de existir; vi-me justificado.

Nessa noite tornei a ouvir o canto remansoso dos galos distantes de Chapéu d’Uvas ou Mar de Espanha, preanunciador, por exemplo, da mozartiana Serenata em ré maior K. 320, especialmente na parte em que soa a trompa do postilhão. Era óbvio que aqueles galos pertenciam a outra raça, não à do quinta-coluna que denunciara São Pedro na noite da entrega de Jesus Cristo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário