segunda-feira, outubro 9

Assim começa o livro...

Na terceira noite depois do Ano-Novo — no vigésimo quarto dia do cerco a Budapeste —, no esconderijo de um grande imóvel do centro da cidade, uma jovem decidiu que sairia do edifício sitiado, atravessaria para o outro lado da rua transformada em campo de batalha e, de todo modo e a qualquer preço, se reuniria ao homem que fazia três semanas se amontoava com cinco outras pessoas no refúgio do porão emparedado do casarão em frente. O homem era o pai da jovem, e a polícia política, mesmo então, no período da confusão e da ruína final, o procurava com determinação e especial diligência.

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A jovem não era uma “heroína”; ao menos não se sentia assim. Havia semanas ela não sentia nada a não ser o cansaço que sentimos depois de um esforço tremendo, quando a alma acredita que ainda suporta a fadiga mas o corpo, de súbito, começa a se rebelar, o estômago responde com náuseas a tudo o que acontece e o organismo fica impotente, como se estivesse envolto num lençol de chumbo. O corpo humano sente esse cansaço definitivo, nauseante nas canículas selvagens, nos dias úmidos, escaldantes de verão.

A jovem tinha razões para a estafa: vivia sem casa havia meses, o pai se escondia em perigo mortal. Fazia dez meses que ela ocultava o pai e também outros, refugiados, fugitivos, que, no mundo que se desfazia, buscavam por uma noite um lar, um abrigo ocasional; e, nas últimas semanas, também ela se vira obrigada a sobreviver “fora da lei”, porque na faculdade, onde cursava o último ano, os colegas não cederam aos alemães e ela não embarcara com eles no trem que, na Alemanha, salvaria dos russos a juventude universitária. E assim ela também contava como uma fugitiva militar e se escondia com papéis falsos. Mas ela não se importava muito com isso, como outros também não se importavam com esses detalhes miúdos. Os russos já tinham transposto os bairros periféricos, combatiam entre os quarteirões de casas do centro.

De acordo com os papéis falsos da jovem — que ela ganhara da filha de uma das mulheres responsáveis pela limpeza da faculdade —, ela se chamava Erzsébet Sós. Segundo os papéis, acabara de fazer vinte e três anos e era enfermeira hospitalar; para o observador superficial, isso tudo correspondia de uma maneira geral à realidade. Na verdade, por simples acaso, o nome Erzsébet coincidia: ela de fato se chamava Erzsébet. Nessa coincidência ela via um sinal dos céus, um salvo-conduto afortunado; não fora preciso trocar por outra letra o E bordado em suas roupas de baixo, o que também a alegrava, pois naqueles tempos ela nem tinha outra roupa de baixo além da que trazia no corpo. 

Às vezes, em momentos mais calmos e lúcidos — porque nas últimas semanas, em especial nas três semanas anteriores, quando seu pai havia sido emparedado no porão da casa em frente, ela se sentia como o doente febril, capaz de pensar e de fazer juízos objetivos apenas em determinados períodos! —, ela achava a história da roupa de baixo, a coisa pessoal dela com os papéis falsos, ridícula; ridícula, insignificante, cautela excessiva e preocupação desnecessária, pretensiosa. Como todos que nos meses anteriores, no período que se seguiu à ocupação alemã, obrigaram-se, por alguma razão, a se esconder, Erzsébet aprendeu todos os ardis desse modo de vida e, ao mesmo tempo, aprendeu também que, juntamente com o cuidado obrigatório, o destino cego comandava os homens nessas situações.

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