sábado, julho 8

Assim começa o livro...

Em meados de maio de 1800, Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o Grande São Bernardo, uma empreitada considerada até então como praticamente impossível. Durante quase duas semanas, uma coluna interminável de homens, animais e equipamento avançou de Martigny via Orsières pelo vale de Entremont, e de lá seguiu montanha acima em serpentinas aparentemente infindáveis até o desfiladeiro a dois mil e quinhentos metros acima do nível do mar, os pesados canos de canhão tendo de ser arrastados pela tropa em troncos de árvore ocos, ora sobre a neve e o gelo, ora sobre as escarpas rochosas já nuas.

Entre os poucos integrantes dessa legendária travessia dos Alpes que não permaneceram anônimos estava Henri Beyle. Então com dezessete anos, ele via chegar ao fim sua profundamente execráveis e, com algum entusiasmo, estava prestes a lançar-se em uma carreira nas forças armadas que o conduziria, como sabemos, pela Europa adentro. As notas nas quais Beyle, aos cinqüenta e três anos - ele passava uma temporada em Civita Vecchia quando as redigiu -, tenta resgatar a tribulação daqueles dias dão prova eloqüente das diversas armadilhas da memória. Uma hora sua visão do passado consiste em nada mais do que manchas cinzentas, outra hora ele topa com imagens de clareza tão fora do comum que não imagina ser possível lhes dar crédito, como aquela do general Marmont, que ele diz ter visto em Martigny à esquerda da trilha por onde avançava a coluna, com o uniforme azul-celeste e azul-royal de um conselheiro de Estado, e que continua a ver tal e qual, como ele nos assegura, sempre que fecha os olhos e evoca a cena, embora Marmont, como Beyle aliás sabe muito bem, tivesse de estar vestindo então seu uniforme de general, e não o traje de Estado.

Beyle, que afirma ter nessa época a constituição de uma menina de catorze anos devido a uma educação totalmente desvirtuada, voltada apenas ao desenvolvimento de ocupações burguesas, escreve também que ficara de tal modo marcado pela quantidade de cavalos mortos à beira da trilha e pelos demais destroços de guerra deixados como rastro pelo exército em zigue-zague que ele já não tinha mais uma noção precisa daquilo que, então, o enchera de espanto. Suas impressões teriam sido aniquiladas, assim lhe parecia, pela própria violência do choque. Por isso, o desenho seguinte deve ser tomado apenas como um tipo de expediente por meio do qual Beyle tenta trazer à memória como foi que o batalhão com o qual avançava se viu debaixo de fogo perto do vilarejo fortificado de Bard. B é o vilarejo deBard. Os três Cs no canto superior direito representam os canhões da fortaleza, que disparam contra os pontos L L L na trilha que se estende sobre a encosta íngreme P. Onde está X, no abismo, jazem os cavalos que, loucos de pavor, se precipitaram irremediavelmente ladeira abaixo, e H significa Henri, a posição do próprio narrador. Claro que Beyle, ao se achar nesse ponto, não terá visto as coisas dessa forma, pois na realidade, como sabemos, tudo é sempre muito diferente.

Aliás, Beyle escreve que, mesmo quando a pessoa dispõe de lembranças cujas imagens são particularmente vivas, nelas pouco se pode confiar. Assim como lhe ficara gravada a aparição majestosa do general Marmont em Martigny antes do início da subida, também a descida do alto do desfiladeiro e o vale do São Bernardo que se abria contra o sol da manhã, tão logo transposto o trecho mais difícil do caminho, teria deixado nele uma impressão indelével pela sua beleza. Ele nunca mais, diz, se livrara de tal visão, e constantemente lhe passavam pela cabeça as primeiras palavras italianas - quante miglia ci sono da qui a Ivrea e donna cattiva - que dias antes lhe havia ensinado um pároco na casa de quem se aquartelara. Beyle escreve que durante muito tempo acreditara poder lembrar-se dessa viagem a cavalo em todos os seus detalhes, sobretudo da imagem na qual, a luz já esmaecendo, descortinou pela primeira vez a cidade de Ivrea a cerca de um quilômetro. Lá estava ela, um pouco à direita, onde o vale se torna mais amplo lentamente e se abre para a planície, enquanto à esquerda, nas profundezas da distância, erguiam-se as montanhas, o Resegone di Lecco, que mais tarde ainda representaria tanto para ele, e lá no pano de fundo o Monte Rosa. 

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