terça-feira, junho 20

Somos todos normais

terminusantequem:
“Basil Blackshaw (Irish, 1932-2016) - Girl Reading
”
Basil Blackshaw
Na semana passada, cansada de ficar no computador, fui à cozinha fazer um lanche. Enquanto coava um café, o interfone tocou: o porteiro avisou que estava mandando a correspondência pelo elevador. Fui até a sala, esperei o elevador, conferi as contas, abri os pacotes de dois livros, voltei para a cozinha, lavei a xícara — e passei a hora seguinte na maior aflição, revirando a casa em busca dos únicos óculos que tenho para a distância do computador. Procurei na mesinha de cabeceira, no banheiro, ao lado da cafeteira, no escritório, na sala. Nada. Finalmente, em desespero de causa, abri a geladeira. Pois lá estavam eles, no exato lugar em que eu os havia deixado quando precisei conferir a data de validade dos queijos, para saber qual abriria primeiro. O pior é que me lembro nitidamente de ter pensado: Esse não é um bom lugar, vou acabar me esquecendo.

Contei o que aconteceu no Facebook. E aí descobri a única vantagem de esquecer os óculos na geladeira: passei a tarde me divertindo com uma história mais engraçada do que a outra. Algumas amigas — sim, no plural — saíram de casa carregando o saco de lixo em vez da bolsa. Uma só percebeu o engano no ônibus, quando um passageiro gentil, que estava sentado, se ofereceu para segurar o pacote. Outra tomou banho correndo, saiu de casa e estranhou muito os olhares que lhe eram dirigidos, até que uma senhora perguntou por que ela estava com aquela toalha enrolada na cabeça. Minha queridíssima Maria Eugênia foi comprar um maiô e, na cabine de provas, tirou os óculos para tirar a blusa. Mais tarde, já na rua, lembrou-se disso e voltou à loja, perguntando se havia esquecido os óculos por lá.

— Um terceiro?! — espantou-se a vendedora. Ela estava com um no rosto e outro no alto da cabeça.

Marcia Couto estava em Roma: “Fui jogar uma moedinha na Fontana di Trevi para fazer um pedido e, na hora, apertei o nariz para mergulhar, em vez de jogar a moedinha. Não tenho noção do que me passou pela cabeça naquela hora”.

“Sei como é isso”, respondeu a Luciana Veiga Jardim. “Me benzi quando passava em frente ao mercadão um dia desses. Nunca mais fiquei livre do bullying da minha filha.”

“Eu estava atrasadíssima colocando roupa na máquina e falando no sem fio”, contou Liana Almeida. “Desliguei, joguei dentro da máquina e saí. Quando voltei, fiquei louca procurando o telefone pela casa, até tirar a roupa da máquina. Lá estava ele, mudo para sempre.”

Valéria Burle falava com a filha no celular, enquanto rodava angustiada pela casa, procurando algo que não encontrava. Quando desligou, a cunhada perguntou o que tanto ela procurava. “Meu celular! Não sei onde enfiei.”

A primeira coisa que vem à cabeça de Cida Penna quando perde os óculos é: “Cadê o celular para ligar para os óculos?”. Mariana Sgarbi já levou o sem fio numa viagem internacional, mas nem dá para contar quantos deles não saíram de casa disfarçados de celulares. Isso para não falar em quem fica apertando as suas teclas em frente à televisão e se revolta porque não está conseguindo mudar de canal: o que há de errado com o controle remoto?

Mas nada supera o épico do Idelber Avelar, que jura sobre o manto alvinegro que a história não é inventada:

“É bem difícil a vida de alguém que começa a usar óculos aos 44 anos de idade. Ontem, depois de terminar os relatórios, cartas de recomendação, e-mails, formulários e toda essa parafernália demoníaca que acompanha a vida de professor universitário, resolvo que é hora de começar a ler outro romance. Nesse meio-tempo, perco os óculos.

Começo a procurá-los. Biblioteca, sala, cozinha, nada. Bem frustrado, acendo um cigarro para continuar a busca e me lembro de que os óculos podem estar na mesa da cabeceira da cama. Como não fumamos no dormitório, deixo o cigarro do lado de fora para entrar no quarto e procurar os óculos. Não os encontro. Quando volto, me dou conta de que já não sei onde deixei o cigarro. Passo então, evidentemente, à busca mais urgente, que é o cigarro que está queimando em algum lugar. Lembro que não o havia deixado num cinzeiro, mas na extremidade de uma mesa, balcão ou algo assim. Como a casa tem alguns papéis no chão, vem-me o pânico de que o cigarro caia, encontre algum papel e a casa se incendeie.

Correndo de um lado para outro na sala, copa, cozinha e biblioteca, não encontro o cigarro, mas vejo os óculos no balcão do café. Como são óculos de leitura somente, mantenho-os na mão direita e continuo a busca pelo cigarro. Passando pela copa, vejo o cigarro já caído no chão. Deixo os óculos na primeira superfície que vejo e vou atrás do cigarro. Recupero o cigarro, sento-me, aliviado, dou um trago e me levanto para recuperar os óculos que… já não sei onde estão. Começo então a segunda busca dos óculos.

Extremamente frustrado, decido que preciso de uma Guinness para procurar os óculos dessa vez. Abro a cerveja, sirvo-a num copo (jamais beba uma Guinness no estilo EUA, na garrafa!) e volto a procurar os óculos. Vejo-os de longe, na sala, deixo o copo com a cerveja em algum lugar, recupero os óculos e momentaneamente perco a Guinness, recuperada depois de uns instantes.

Ao fim de toda odisseia, eu não me lembrava mais de qual era o romance que ia começar a ler. Encontro-me ainda nesse estágio, tentando me lembrar de qual era ele, neste momento em que escrevo”.

Cora Rónai

Nenhum comentário:

Postar um comentário