quarta-feira, março 1

O sofá

afroui:
“Margery Kelz
”
Margery Kelz
Estavam recostados no sofá, quase se tocando, mas sem se tocar; o sofá no qual fizeram amor na urgência da primeira vez e de tantas outras; ele sentindo a mesma urgência, ela fingindo que lia. Não transavam havia dois meses. Ele estendera hesitante o braço direito ao longo do encosto, sentindo-se como um rapaz tímido que vai namorar a primeira vez. Ela dera um salto, como se tivesse sido ejetada por uma mola. E falou o que falou. Depois se arrependeria, mas o estrago ficou.

Isso foi há cinco dias. A frase o penetrou como uma punhalada. Estava ansioso pela interpretação do analista.

— Conte como foi.

— Começou um dia antes. Ela tinha chegado da tal terapia e eu perguntei se tinham conversado sobre a razão de não transarmos há tanto tempo. Ela respondeu que não ia fazer sexo com quem não podia lhe dar um filho. Queria a separação. Disse isso assim, sem meias palavras. Naquela noite, custei a pegar no sono. Mas o pior aconteceu no dia seguinte, na terça de manhã. Estávamos no sofá, ambos calados, eu tentei me aproximar, ela se levantou e disse que preferia se masturbar a fazer sexo comigo, e que já tinha feito isso muitas vezes, e que muitas amigas dela, sol - teiras e casadas, se masturbavam. Fiquei arrasado, perdi a fala, na hora levantei e saí, fui andar, não sei quanto tempo andei por aí, relembrei os anos que vivemos juntos, tentei entender se de re - pente ela se apaixonou por outro, ou se a diferença de idade começou a pesar, eu indo para os 60, ela mal chegando aos 40; ela já havia afastado discretamente nossas camas, assim, bem pouquinho, como se não fosse nada; nessa noite dormiu em outro quarto; agora estamos assim, sem nos falar, como estranhos. Ontem reclamei, ela não podia ter dito aquilo a um companheiro sexualmente ativo e ela respondeu que não era bem assim, foi nervosismo, ainda estava muito tensa, e se desculpou, mas insistiu que queria ter filhos, que estava passando da idade limite.

— Você acha que esse é o verdadeiro motivo?

— Prefiro achar que é, embora em treze anos ela nunca tenha dito isso, ao contrário, quando decidimos morar juntos e eu falei da minha vasectomia, ela se mostrou aliviada; não precisaria tomar pílula; não queria interromper a carreira para cuidar de criança; não queria ter filhos de jeito nenhum, assim como não quis do primeiro casamento, disse isso várias vezes.

— E por que você acha que agora ela quer?

— Não sei, pode ser essa coisa da idade limite, isso deve mexer com a cabeça das mulheres, e pode ser pretexto, ontem ela avisou que não dormiria mais no apartamento e não dormiu mesmo. Foi quando eu me dei conta de que a separação estava consumada. Hoje apareceu pela manhã e eu disse a ela bem claro que o apartamento era meu e só meu, era tudo o que eu tinha e dele não ia abrir mão. Foi a primeira vez que falei duro. O apartamento já era meu quando passamos a viver juntos e o mobiliário também, inclusive geladeira, fogão, tudo. E todas as despesas da casa eu sempre paguei, ela nunca entrou com nada, embora ganhe bem. Acho que hoje o salário dela é maior do que a minha aposentadoria; mas ela não entra com um tostão nas despesas, tem sido assim, todos esses anos.

— Você parece surpreso, mas ela vinha dando sinais...

— Talvez eu não quisesse ver, mas isso de não querer transar é recente...

— Como começou?

— Começou com ela chegando sempre depois das dez, muito estressada, ou assim parecia, dizia que a pressão na prefeitura estava insuportável, que havia uma luta interna pesada, estava num fogo cruzado, precisava trabalhar o dobro. Tomava uma ducha e caía na cama. Nos fins de semana, saía com as amigas e voltava tarde. Eu fui ficando mal, a abstinência sexual me afeta demais, me sentia humilhado, mas achava que isso ia passar, assim que ela fosse contratada como concursada. 

— E antes dessa fase, como era?

— Antes... Deixe ver... Teve essa viagem ao Rio, que eu já contei, a crise de pânico dela na porta do avião, tão forte que não embarcamos... Antes disso, bem, antes disso, no ano passado houve um episódio estranho, eu não dei atenção, mas depois do que aconteceu esta semana, fico pensando... Ela foi a Curitiba visitar a irmã, telefonou da rodoviária assim que desembarcou, mas não apareceu na casa da irmã; as horas se passavam e ela não chegava, o celular dava fora da área ou desligado. Só apareceu na irmã tarde da noite. Ela nunca me explicou... Enfim, pode ter sido neurose minha, mas hoje eu vejo que eram sinais... No começo do mês, pediu para eu assinar um documento no cartório atestando uma tal de união estável. Eu perguntei o motivo e ela disse que era para o concurso da prefeitura, uma formalidade, mas em retrospecto eu me pergunto se já não era um preparativo para a separação; esse pensamento me perturba muito... Eu sempre fiz as vontades dela. Paguei o curso de mestrado lato-senso que ela fez, em administração. Nunca neguei nada a ela. 

— Como se você fosse marido e pai ao mesmo tempo; ela foi tua aluna, certo?

— Sim, pela idade podia ser minha filha, aliás, a Adriana, do meu primeiro casamento, é só dois anos mais velha. Você fala em marido e pai ao mesmo tempo, o fato é que eu sou louco por ela, ainda sou, nossa vida sexual sempre foi intensa, até essas coisas começarem a acontecer. Talvez eu tenha errado ao não dar mais atenção à carreira dela, aos problemas que estava enfrentando na prefeitura.

— E agora, como vai ser?

— Não sei, não consigo me ver separado dela; se ela chegar amanhã propondo a reconciliação, dou o dito por não dito. 

— É a tua esperança?

— É o que eu mais quero. Chegar ao apartamento e encontrá-la no sofá, me chamando para sentar ao seu lado, pedindo talvez meio sem jeito para a gente recomeçar... Torço tanto por isso que preparei uma fala, para não tripudiar, não humilhá-la...

— Bem, nosso tempo acabou; nos vemos na segunda, certo?

Finda a sessão, ele deu muitas voltas antes de se dirigir ao edifício, já ao anoitecer. Era como se quisesse postergar o retorno, prolongar o mais possível a esperança na reconciliação, dar a ela mais tempo para mudar de ideia. Tentava imaginá-la no sofá, aguardando-o, amorosa e arrependida.

Estranhou o sorriso cínico do porteiro. Ao abrir a porta do apartamento, o susto: não havia sofá, nem mobiliário algum; o apartamento fora completamente esvaziado. Ficaram seus livros de astronomia, empilhados no piso do escritório e suas roupas, amontoadas no armário embutido. Naquela noite, dormiu no chão.
Leia mais um conto de  B. Kucinski

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