domingo, março 12

Assim começa o livro

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Um jovem singelo viajava, em pleno verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita, por três semanas. Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa; demasiado longa, na verdade, para uma estada tão curta. É preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até a beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por sobre abismos outrora considerados insondáveis. Dali adiante, a viagem, que até esse ponto avançava rapidamente, quase em linha reta, desenreda-se. Há delongas e complicações. Na localidade de Rorschach, já em território suíço, volta-se ao amparo da viação férrea; mas logo não se vai além de Landquart, pequena estação alpina, onde é preciso fazer baldeação. É um trem de bitola estreita o que ali se toma depois de prolongada espera numa paisagem varrida pelo vento e desprovida de encantos. No instante em que se põe em movimento a locomotiva de pequeno porte, mas de extraordinária força de tração, começa a parte deveras aventurosa da viagem, uma escalada brusca e penosa que parece não ter fim. A estação de Landquart situa-se a uma altura moderada. A partir dela, porém, adentra-se pelas montanhas, por uma estrada rochosa, áspera, angustiante.

Hans Castorp — eis o nome do rapaz — estava sozinho num pequeno compartimento almofadado em cinza, onde também se encontravam sua maleta de couro de crocodilo (presente de seu tio e pai de criação, o cônsul Tienappel, cujo nome convém mencionar desde já),bem como o casaco de inverno, a balouçar suspenso num gancho, e o cobertor de viagem enrolado. Estava sentado junto à janela aberta, e,como a tarde se vinha tornando cada vez mais fresca, levantara — rapaz mimado e franzino que era — a gola do sobretudo de verão, forrado de seda e de corte amplo, ao gosto da moda. A seu lado, no assento,jazia uma brochura intitulada Ocean Steamships, na qual Hans Castorp, durante as primeiras horas de viagem, de vez em quando lançara um olhar; agora, porém, o livro permanecia ali abandonado, enquanto o hálito da locomotiva arquejante, ao entrar pela janela, salpicava-lhe a capa de partículas de carvão.Dois dias de viagem apartam um homem — e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida — do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem podia imaginar enquanto um fiacre o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo, roja-se de permeio entre ele e seu lugar de origem revela forças que se costuma julgar privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Qual o tempo, gera esquecimento; porém o faz desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo.

Dizem que o tempo é como o rio Lete; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, é mais rápido. Hans Castorp ia passando por experiências análogas. Não tivera a intenção de levar essa viagem muito a sério nem de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquidá-la depressa, porque tinha que ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar sua vida anterior exatamente no ponto em que a abandonara por um instante. Ainda ontem se movimentara dentro do costumeiro círculo de ideias; ocupara-se com os acontecimentos mais recentes — seu exame de conclusão — e com o futuro imediato — sua entrada na vida prática, como funcionário da firma Tunder & Wilms (Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras). Com a máxima impaciência que seu temperamento lhe permitia, procurara olhar para além das três semanas vindouras. Nesse momento, porém, parecia-lhe que as circunstâncias exigiam dele plena atenção, não lhe sendo lícito menosprezá-las. Essa sensação de ser alçado a regiões cujos ares nunca respirara, e onde, como sabia, reinavam condições de vida particularmente rarefeitas e reduzidas, a que em absoluto não estava acostumado — essa sensação começava a excitá-lo, a enchê-lo de certa angústia. O torrão natal e a rotina de sempre haviam ficado não somente para trás, muito para trás, mas sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascensão continuava a afastá-los mais ainda.


Pairando entre eles e o desconhecido, Hans Castorp perguntava-se como passaria lá em cima. Será que não seria imprudente e prejudicial a ele, que nascera poucos metros acima do mar e se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar tão subitamente a esses sítios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude média? Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez lá em cima — pensava —, devia-se viver como em toda parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante a escalada, as esferas impróprias em que se encontrava. Hans Castorp olhou janela afora: o trem serpenteava, sinuoso, através de um desfiladeiro estreito. Viam-se os primeiros vagões, via-se a locomotiva vomitando, no seu esforço, golfadas de fumaça parda, esverdeada e negra que logo se dissipavam. Nas profundidades, à direita, murmuravam cursos d’água; à esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um céu cinzento
como pedra. Túneis tenebrosos iam desfilando, e quando reaparecia a luz, rasgavam-se dilatados abismos com povoados em seu fundo. Fechavam-se os abismos, vinham logo a seguir novos desfiladeiros com restos de neve nas gretas e fendas. Havia paradas diante de casinhas miseráveis de estações pequenas; e de estações sem saída em frente, o trem partia em direção oposta, o que produzia um efeito desnorteante. Panoramas grandiosos do universo de cumes alpinos abriam-se de repente,um amontoado fantasmagórico e solene que se procurava alcançar e galgar, para logo no próximo meandro da estrada subtraírem-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trás a zona das árvores frondosas e, se não se enganava, também a dos pássaros canoros. Essa ideia de cessação e empobrecimento fez que ele, acometido de um ligeiro acesso de vertigem e mal-estar, cobrisse por dois segundos os olhos com a mão. Mas isso passou. Viu então que terminara a ascensão; estava vencido o ponto culminante do passo. No fundo plano de um vale o trem agora corria com maior comodidade.

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