sábado, janeiro 7

Mentiras da ficção de verdade

Desmontando la biblioteca entre todos los lectores (il·lustració de Phil Wrigglesworth)
 Phil Wrigglesworth
Pediram-me que repetisse uma brincadeira que fiz aqui há dois anos, quando começava 2015: a escolha de parágrafos iniciais de livros de que gosto, para que o leitor passeie por eles como se estivesse a esmo numa livraria e, ao acaso, folheasse aqui e ali. Talvez seja atraído para um mergulho mais prolongado. Na ocasião, chamei isso de “Iscas de leitura”. Acho que o melhor seria remeter os interessados a uma livraria de verdade, não virtual, dessas que permitem ficar à toa escolhendo, à vontade. Mas alguns bairros ou cidades se ressentem de sua falta. E, neste momento brasileiro, reconheço a importância de ler literatura, uma ficção construída com arte, depois de um ano inteiro em que nem sempre foi fácil distinguir o real e o falso entre tanta coisa que lemos e ouvimos.

Todos precisamos de fantasia. Imaginar é uma atividade humana natural. Não destrói a realidade, não faz mal algum à percepção científica das coisas. Pelo contrário: sem imaginação, não há descoberta científica. Mas a ficção literária tem sua lógica própria, sua racionalidade subjacente. Quem costuma ler literatura tende a distinguir melhor a incoerência da mentirada que tentam nos impingir como se fosse verdade, seja no marketing, na imprensa desonesta, na superficialidade da internet, no discurso político ou na mera lorota. Vamos então, a algumas sugestões para leitura neste verão, no ar-condicionado:

A: “Desci da calçada, recuei uns passos, olhando para cima, e, chegando ao meio da rua, levei as mãos à boca, como um megafone, e gritei para os últimos andares do prédio:

— Teresa!

A minha sombra se assustou com a lua e se agachou entre meus pés.”

B: “No dia 15 de maio de 1796, o General Bonaparte entrou em Milão à frente daquele jovem exército que acabava de transpor a ponte de Lodi e de ensinar ao mundo que após tantos séculos César e Alexandre tinham um sucessor.”

C: “Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus — mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira.”

D: “Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama assentava-se em sólidos feitos pessoais. Aos dezoito anos, trouxera honra à sua aldeia ao vencer Amalinze, o Gato, um grande lutador, campeão invicto durante sete anos em toda a região.”

E: “Eulália começou a morrer na terça-feira. Esquecida do último almoço de domingo, quando a família se reunira em torno da longa mesa especialmente armada para receber filhos e netos. À cabeceira, Madruga presidia os festejos e os hábitos implantados na casa desde a sua chegada à América.”

F: “Alguém tinha contado a David a história do sujeito diagnosticado com uma doença grave a quem o médico só havia dado um ano de vida : o doente pediu demissão do emprego, vendeu tudo o que tinha e foi gastar numa farra de dimensões épicas.”

G: “Sou o médico de quem às vezes se fala nesse romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica.”

H: “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina.”

I: “Ninguém entende este gringo — diz o delegado. — Veio esta manhã com um boy do Hotel Nacional e fez uma confusão danada. É suíço: examinei o passaporte dele. Disse que viu uma dona morta numa praia do Iparanã.”

J: “Estou vivendo na Villa Borghese. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.”

K: “Não vejo nenhuma metáfora no que eu digo. É como se tudo estivesse na sombra. Houve um tempo em que eu frequentava um restaurante obscuro, que não existe mais, chamado Seiyoken, numa rua mal-afamada da Liberdade.”

L: “Sou cego, mas não sou surdo. E por não ser total a minha desgraça, fui obrigado, ontem, a ouvir durante quase seis horas um pretenso historiador cujo relato daquilo que os atenienses costumam chamar ‘as Guerras Persas’ era tão disparatado que, fosse eu menos velho e mais favorecido, me teria levantado do assento no Odeon e escandalizado toda a cidade de Atenas com minha resposta.”

M: “Em 1517, o padre Bartolomeu de las Casas teve muita pena dos índios que se esfalfavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros que se esfalfassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas.”

Meus votos de boa leitura. E palmas para os autores: Italo Calvino (“Um general na biblioteca”), Stendhal (“A cartuxa de Parma”), Inês Pedrosa (“Fazes-me falta”), Chinua Abebe (“O mundo se despedaça”), Nélida PIñon (“A República dos sonhos”), Adriana Lisboa (“Hanoi”), Italo Svevo (“A consciência de Zeno”), Chico Buarque (“Leite derramado”), Darcy Ribeiro (“Maíra”), Henry Miller (“Trópico de Câncer”), Bernardo Carvalho (“O sol se põe em São Paulo”), Gore Vidal (“Criação”), Jorge Luís Borges (“História universal da infâmia”).

Ana Maria Machado

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