terça-feira, janeiro 10

Assim começa o livro...

Compro o quinto volume da correspondência de Machado de Assis na manhã do dia 24 de junho de 2015. Datas-limite definem e recobrem o material anotado com competência por especialistas e publicado pela Academia Brasileira de Letras: 1905-1908. Se recortada, a curta fração de tempo ganha o formato de ponto de interrogação e sobressai de forma agressiva e incontornável. Os nove caracteres — oito algarismos unidos quatro a quatro por traço — vêm impressos em negro na capa que guarnece cartas e mais cartas de Machado de Assis e de seus correspondentes. É inestimável a valia do volume para o estudioso da literatura ou para o simples observador da história nacional no início do século xx. Lá dentro, entre 1905 e 1908, se desenrola o cotidiano dos últimos anos de vida do grande romancista brasileiro que nasce na corte imperial em 1839. Passa toda a vida na metrópole, com curta estada em Petrópolis e em Nova Friburgo, e vem a falecer no bairro do Cosme Velho, em setembro de 1908, viúvo da portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, e sem filhos.

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Fixo os olhos no lado de fora do volume. Aprecio a curta fração de tempo que acoberta a reta final duma compacta e misteriosa vida profissional, vivida de modo a realçar os valores nobres que uma nação formada por indígenas, conquistadores lusitanos, escravos africanos e colonos europeus pode manifestar no Novo Mundo. Salienta-se a reta final duma vida bem tecida com amizades e amor, de muito trabalho e muito sofrida.

Aprecio a curta fração de tempo. Fascina-me enxergar a graça e o valor da experiência humana pela abreviação de longo e extraordinário percurso individual em pouquíssimos anos salientes. Nada responsabiliza mais o cidadão brasileiro letrado e o acusa de conluio vergonhoso com a ditadura imposta pelo Palácio do Catete que o relato dos meses que se seguem ao dia 13 de janeiro de 1937, dia em que o romancista Graciliano Ramos deixa a prisão a que fora condenado sem julgamento pelo regime Getúlio Vargas. Se o latino-americano negligenciar a viagem em 1936 do dramaturgo francês Antonin Artaud ao México, então presidido por Lázaro Cárdenas, não terá se adentrado com coragem e paixão pelas longas e intrincadas relações nos planos político e cultural entre os colonizadores espanhóis e os índios astecas e pelas relações pós-coloniais entre a Europa e a América Latina.

Ao negligenciar alguns meses das experiências de vida de Graciliano e de Artaud, nosso compatriota estaria também negligenciando o significado profundo da imersão tardia dos latino-americanos no fogo cruzado da Segunda Grande Guerra e o modo como a poderosa nação ao norte joga a bomba atômica em Hiroshima, chuta pra escanteio a Inglaterra e assume de modo dramático e incontestável a liderança mundial. 1905-1908. Um grão da areia que cobre as extensas praias que banham o oceano Atlântico. E se eu, para curar a intranquilidade que me assalta nos momentos duros da solidão derradeira, que desmorona o corpo e desmantela minha imaginação, decidisse domesticar, neste ano de 2015, a linguagem da viuvez e da velhice de Machado de Assis no modo como se amansa o filhote rebelde e arisco para transformá-lo em companheiro e interlocutor calado, em animal de estimação?

E se a curta fração de tempo vivida e impressa em negro na capa do livro fosse respeitada por mim como bula de remédio milagroso?

Há que se precaver com metáforas. Adestramento da vida selvagem alheia e bulas de medicamento simbólico são por natureza exercícios inequívocos e ditatoriais e servem para reafirmar a eficácia de quem quer manter curtas as rédeas sobre o próprio corpo ou sobre o corpo alheio. No final, regras de adestramento e bulas propõem mais do que dispõem. Ao espalharem aos quatro ventos os benefícios fortificantes do controle físico e do autocontrole emocional, querem esconder melhor os danos colaterais.

Arrisco-me, assim mesmo.

Na hora de dormir, enquanto afofo o travesseiro, os dois olhos arregalados e agradecidos do filhote domesticado me espiam com meiguice. Deito na cama, recosto a cabeça, estendo o corpo e o recubro, e me encaminho devagarzinho para o sono. Boa noite — Machado de Assis e eu nos despedimos em silêncio conivente para nos reencontrarmos nas regeneradoras aleias do sonho, lugar onde — e momento em que — o happy ending se assemelha a moral de fábula e diz que, ao embalo dos braços de Morfeu, os acontecimentos da véspera e os dramas tristes da vida são amadurecidos e caem do galho. Ao me levantar bem-humorado na manhã seguinte, calçar os chinelos e vestir o robe de chambre sobre o pijama, as quatro patas do bichinho de estimação se espreguiçam, distendem e me acompanham servilmente pelos cômodos do apartamento até a mesa. Espera-nos o café da manhã. Sirvo-o. Reinou a tranquilidade nas horas mais desamparadas e perigosas da nossa vida de velhos solitários.

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