sexta-feira, dezembro 16

A estrela-guia da tribo surrealista

Quando se apagam as luzes é que eu me vingo espiando as estrelas.
Campos de Carvalho

De repente, vejo uma bela constelação: Sartre, Ionesco, Buñuel, Breton e Campos de Carvalho. São sábias estrelas onde tentamos, encantados, buscar um pouco de brilho, na esperança de ofuscar o fosco que somos. Do meu pequeno observatório constato que observam muito mais do que qualquer luneta. No contexto de tal constelação, Campos de Carvalho se faz minha Estrela-Guia. Estrela discreta. Não gosta de figurar no centro do céu, para não ser vista. Não gosta de luzes ao seu redor. Pra quê? se luz é o que mais tem para nos dar?

Pra enxergá-la, é preciso não uma luneta, mas, uma “visão” que transcenda o meramente visível. E esta visão não se encontra nos olhos, mas no abstrato sentido de “ver”. E, a Arte de ver atinge o “óbvio oculto”, aquilo que nossos olhos não nos permite alcançar, mesmo usando lunetas. Também não estou me referindo a uma “terceira retina” e, sim, aos “olhos da percepção”, que ultrapassam o fato chamado de real, criando desta forma, uma outra realidade que, antes de se consolidar, é vista como Utopia, como se esta não fosse fundamental para transformar a (Ir)Realidade que (Iludidos) acreditamos vi-ver.

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E esta minha Estrela-Guia me fez acreditar que estivesse em um outro plano que não o terrestre, quando pisei o chão de seu apartamento, no dia dois de dezembro de 94, um dia após meu aniversário (E poderia haver presente maior?), quando ao lado de sua esposa, Dona Lygia (a quem ele chama de Santa), me entregou um livro absolutamente inédito, escrito há sessenta anos, ou seja: aos dezoito anos de idade! É um livro de poemas que se chama “Os Sinos de Is”, onde o poeta já fazia citações de Verlaine, Gaughin e, se inspirando ao mesmo tempo em um quadro (não especificado) de Arnold Böcklin, além de epigrafar o seguinte texto de Jens Peter Jacobsen: “...Mas isso não impedia que em certos momentos, em horas de recolhimento, algo se agitasse e murmurasse dentro dele, qualquer coisa como sinos que tocassem numa cidade coberta pelo mar.” E, junto com seu segundo livro editado que é “Tribo”, Campos me deixou fotocopiar este inédito, que é um perfeito esboço de toda a sua obra. Certamente, este foi um dos mais felizes e importantes dias de minha vida. Afinal, você já teve o privilégio de conversar com a sua estrela-guia? De ser muito bem recebido em seu apartamento? Já bebeu uísque com sua estrela-guia? Pois, eu já.

E não é à-toa que no dia-a-dia, quando falamos, quebramos a própria fala e, calados, “vemos” o indizível na linguagem do inominável. Afinal, o que existe nem sempre aparece. Quando diz que “o fato de desaparecer como apareceu, também o pensamento faz o mesmo, e o sonho e nem por isso são menos reais e lhes conseguimos fugir ao jugo, como puros sonâmbulos, a carteira de identidade inutilmente no bolso”, Campos de Carvalho nos prova que só se concretiza o real através da solidez do abstrato.

Com relação à nossa identidade, muitas vezes só a temos “inutilmente no bolso”, sem, no entanto, questionarmos os padrões e valores e conceitos que recebemos “de graça” e, pelos quais pagamos um preço altíssimo: o preço de sermos o que desejam por nós, e não o que desejamos ser.

Falamos tão mecanicamente, que nos tornamos roboticamente humanos, aceitando os comandos do convencional, fingindo que somos felizes pelo simples fato de sermos aceitos como querem, sem criarmos o nosso próprio contexto de vida, sem re-conceituarmos o que dizem ser “certo” ou “errado”. Digo tudo isso porque somente com a embriaguez do questionamento é que se chega à lucidez do conceito. Que o diga minha estrela-guia!

E, para aprendermos os (I)limites do Real/Surreal, para adquirirmos uma visão que transcenda a “miopia cotidiana”, que apenas constata a imagem da obviedade (da qual sempre nos ocultamos), se faz URGENTE ler Campos de Carvalho, este gênio que re-cria, com seu “surrealismo autobiográfico”, a chamada “Linguagem do Absurdo”.

Por fim, para entender Campos de Carvalho é preciso saber que no fim do olhar vê-se o invisível. E, com ou sem observatório, jamais perderei de vista esta minha Estrela-Guia!

Campos de Carvalho (Correio de Araxá, 30 de setembro de 1995)

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