quarta-feira, setembro 28

Náufragos na cidade

Gosto de tropeçar, lendo os jornais, num ou noutro minúsculo evento, que, embora possa parecer totalmente irrelevante para a mecânica geral do universo, me faz refletir. Foi o caso de uma breve nota sobre um sujeito, nos Estados Unidos, que ganha a vida passeando pessoas. Chuck McCarthy, na casa dos 30, é ator, ou gostaria de ser ator, mas raramente o chamam para trabalhar. Vendo pessoas a passear cães lembrou-se então de passear pessoas. “Uma maluquice”, pensou. Depois pensou melhor e foi à luta.

The whole world goes marching  And I, alone  Am wondering  Where the other half of me is.:
Deu certo. As grandes cidades são uma infinita coleção de solidões. Há mais variedades de solidões do que estilos de cerveja. Chuck conta que o procuram pessoas muito diversas. Algumas alugam-no por que se sentem mais seguras acompanhadas, sobretudo quando pretendem passear à noite. Outras gostam de ter um amigo, ainda que seja de aluguel, para mostrar aos vizinhos que não estão tão sozinhas quanto eles pensam. A solidão é uma doença inconfessável.

Recordei-me, lendo a história de Chuck, de um dos melhores contos de Gabriel García Márquez, intitulado “Me alugo para sonhar”. O escritor conta que, quando era jovem, conheceu em Viena, na Áustria, uma sonhadora profissional. A mulher, de origem colombiana, previa ocorrências em seus sonhos. Durante anos viveu (sonhando) para uma família austríaca. Márquez reencontrou-a décadas mais tarde, em Barcelona, e apresentou-a a Pablo Neruda. O poeta não a tomou a sério. No dia seguinte, porém, confessou ao amigo: “Sonhei com a mulher que sonha. Sonhei que ela sonhava comigo”. Márquez riu-se: “Isso é um conto de Borges”.

A autoironia justifica-se. “Me alugo para sonhar” deve ser o mais borgesiano de todos os contos de García Márquez. O conto discute a necessidade que quase todos sentimos de procurar na magia (qualquer forma de magia serve) algum conforto e segurança, mas também trata da solidão. Não se chega a perceber se a sonhadora recorria ao ardil dos sonhos premonitórios para conseguir cama, mesa e roupa lavada — se para conseguir o conforto de uma família.

Vivendo em grandes cidades, estamos cercados de náufragos, cada qual na sua ilha deserta. Dessas ilhas eles avistam o mundo; o mundo é que não os vê. Não conheço pior solidão.

Depois que, em 2012, publiquei “Teoria geral do esquecimento”, um romance sobre uma mulher, Ludovica, que se empareda no seu apartamento, cortando todos os laços com o mundo exterior, passei a receber cartas de pessoas que se reconhecem na personagem, ou que conheceram alguém em situação semelhante. Lembro-me da confissão de uma cubana que foi estudar em Bucareste, nos últimos anos do regime comunista. Aos 18 anos casou-se com um agente da polícia secreta. Meses depois, Nicolau Ceausescu era encostado a uma parede e fuzilado no pátio de um quartel. O agente da polícia secreta desapareceu em meio ao ruidoso tumulto daqueles dias e a jovem, aterrorizada, fechou-se em casa durante meses. “Eu fui a Ludovica!” — disse-me.

A verdade é que para escrever o meu romance me inspirei, em parte, num outro caso. A história do nacionalista e escritor angolano Adolfo Maria, que tendo sido um nome importante na luta contra o regime colonial português, fundou mais tarde uma corrente dissidente, a Revolta Ativa, cujos elementos foram presos ou obrigados a exilar-se logo após a independência. Adolfo Maria permaneceu na clandestinidade, escondido numa casa fechada, durante três anos. Num estado de solidão extrema, afirmou numa entrevista, a loucura está sempre a um braço de distância: “Vemos as paredes avançando sobre nós”. Adolfo combatia o isolamento praticando ioga e meditação. A solidão apurou-lhe a lucidez.

O que Chuck McCarthy faz podia chamar-se assistência a náufragos. Chuck acaba de inaugurar — suspeito — um ofício com imenso futuro. Talvez mesmo um amplo e revolucionário movimento social. Imagino que daqui a alguns anos as ruas das grandes cidades estejam cheias de passeadores, com os seus passeantes. Imagino os passeantes trocando impressões sobre os respectivos passeadores, enquanto recuperam o fôlego, por breves momentos, num banco de jardim:

— Como é o seu passeador?

— John?! Loquaz e divertido. Passe rápido. E o seu?

— Elegante, discreto e paciente. Na minha idade, você sabe, já não posso ter um passeador muito apressado.

Eventualmente, os passeantes começarão a prolongar esses momentos de pausa. Começarão a conversar mais uns com os outros do que com os passeadores. Começarão a passear uns com os outros. Descobrirão que é possível passear com outras pessoas sem pagar nada por isso — e então sim, teremos uma verdadeira revolução, e os passeadores perderão o emprego.

Ou talvez eu esteja sendo demasiado otimista. Por mais que me esforce resvalo sempre para o otimismo.

José Eduardo Agualusa

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