segunda-feira, setembro 12

Cultura a serviço do povo

Camaradas:

Não sei bem se o que lhes vou dizer nesta conversa ligeira combina com o título dela, anunciado no jornal. Escapou-me a notícia, é possível que me afaste um pouco da matéria comunicada aos leitores.

Neo Mamis: The book:
Bem. Para não estarmos com prólogos, entro no assunto e declaro que, na minha fraca opinião, antes de vermos no livro um veículo de cultura, devemos considerá-lo simples mercadoria. Evidentemente ele não é uma graça de Deus, como a luz do sol e a água da fonte: encerra o esforço de numerosas pessoas, do trabalho complexo do autor à rija labuta do impressor. Sem levarmos em conta as fases anteriores e posteriores a isso: a fabricação do papel, da tinta, das máquinas, dos cordéis; a distribuição, a propaganda e até o que neste momento realizamos, pois, confessemos honestamente, exercemos aqui o ofício de camelôs.

Esta minha declaração chocha retira ao livro, objeto pouco mais ou menos inútil à massa e apenas acessível aos iniciados, o caráter de coisa misteriosa a que desde a infância nos habituamos. Criou-se uma espécie de tabu vantajoso à classe dominante: a sabedoria dos compêndios foi durante séculos e continua a ser meio de opressão. Sujeitos hábeis reuniram ideias safadas e adularam, sem nenhuma vergonha, os seus patrões horrorosos. A imprensa sadia é instituição velha, anterior aos tipógrafos, já usada pelos escribas do Egito.

Deixemos os escribas do Egito. Se meter-me em funduras, daqui a pouco estarei falando difícil, empregando a linguagem que desvia dos pensamentos arrumados na folha o homem da multidão. Volto ao que afirmei no começo: o livro é mercadoria. As metralhadoras também são mercadorias, que, até hoje utilizadas contra o povo, irão resguardá-lo. É intuitivo, porém, que de nada servirão se ele não souber manejá-las.

A verdade é que nem todos os livros cantam loas aos tiranos. A desgraça dessa gente é perceber que as suas armaduras racham, a sua força se esvai, os seus defensores se transformam de repente em inimigos. A palavra escrita é arma de dois gumes. A literatura velha arqueja e sucumbe; a literatura nova fere com vigor a reação desesperada. Não nos ocupamos da primeira, está visto; deixaremos que se enterre, no silêncio, na penumbra e no mofo, com algum latim resmungado pelos críticos da LEC.(2) A segunda é a que nos traz a esta sala, encerra-se nos volumes aqui expostos. Precisamos conhecê-la de perto. É claro que nada ganharemos olhando, com respeito, esses volumes protegidos por uma vitrina. Indispensável sabermos o que há dentro deles. Vimos numa capa o nome de Máximo Gorki e experimentamos o desejo de largar uns palpites sobre ele, atrapalhando tudo. Recuamos a tempo — e na reunião da célula ouvimos, bastante chateados, referências ao admirável russo, num informe. Contudo, a recordação da vitrina permanece, garantimos que Máximo Gorki é notável. Temos de cor uma lista de personagens célebres, afirmamos a celebridade, mas seria difícil dizermos em que ela se baseia. Asserções que nos fizeram na escola, repetidas longamente, foram aceitas afinal. Em vão tentamos adivinhar como subiram certos figurões das letras nacionais. Vi um tipo quase chorar lendo a notícia da morte de um literato conde.

Necessário conhecermos a razão dos nossos entusiasmos, não nos comovermos à toa. Vamos ver se a página impressa é digna de admiração. Tratemos, pois, de adquiri-la: é para ser vendida que se exibe além do vidro. Terra de leitura escassa. Vemos filas para banha, açúcar, pão, carne, o diabo, mas não conceberíamos fila diante de uma livraria. Realmente ali não se vendem comestíveis. Contudo é bom um sujeito ler algumas vezes, ao menos para fingir importância na presença do chefe ou da namorada.

Literatura ao alcance da massa? Muito bem. O livro está perto, à mão, na vitrina. Foi redigido cuidadosamente: no interior dele não há cercas de arame farpado, evitaram-se atoleiros, rios cheios, pedras escorregadias e pinguelas, enfim qualquer inteligência razoável pode transitar ali facilmente, por todos os lados. Agora esperemos que o homem do povo se mexa, dê alguns passos até o balcão da livraria, peça o volume. E pague, naturalmente, pois os cidadãos que mourejam naquilo não vivem no éter.

Graciliano Ramos, Rio, 28 de fevereiro de 1947

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