quinta-feira, setembro 29

Assim começa o livro...

Quando sentia frio nos pés, mexia um pouco as pernas até ouvir o barulho queixoso dos pedregulhos no solo. Na verdade o lamento vinha dele. Nunca lhe ocorrera ficar tanto tempo imóvel como agora, atrás daquela cerca, na Estrada Grande, à espera de que o outro passasse.

A tarde morria. Temeroso, quase amedrontado, ele aproximou os olhos da mira do fuzil. Dali a pouco, com o crepúsculo, ficaria difícil fazer pontaria. "Ele vai passar antes que a noite o impeça de mirar, com certeza", dissera-lhe o pai. "Basta ter paciência, esperar."

Fazia tempo que suas articulações doíam. Já nem sentia o braço direito.

Resultado de imagem para ABRIL DESPEDAÇADO (EDIÇÃO DE BOLSO)
Lentamente a mira do fuzil deslizou, ao longo da estrada, por restos de neve que não derretera. Os pastos mais adiante estavam pontilhados por romãzeiras silvestres. A idéia de que aquele era um dia extraordinário na sua vida lhe passou, nebulosa, pela mente. O cano da arma se moveu de novo, no sentido inverso, das romãzeiras para os restos de neve. O que ele chamava dia extraordinário já se reduzia àqueles restos de neve e àquelas romãzeiras silvestres, que pareciam esperar desde o meio-dia para ver o que ele iria fazer.

"Mais um pouco, está escuro", pensou, "e eu nunca poderei mirar." Na realidade, queria que o crepúsculo caísse o quanto antes, trazendo a noite, e o deixasse escapar daquela maldita tocaia. Porém, o dia se arrastava, como se se alegrasse em mantê-lo preso. Embora fosse a segunda tocaia de vendeta na sua vida, o homem que devia matar era o mesmo da primeira emboscada; assim, para ele, era como se uma fosse a continuação da outra.

Sentiu outra vez os pés gelados e outra vez mexeu as pernas, como se desse modo impedisse a friagem de subir. Mas ela já chegara à sua barriga, à garganta, à cabeça até. Uma parte do seu cérebro parecia congelada como os restos de neve mais à frente no caminho.

Não tinha condições de raciocinar. Apenas sentia hostilidade para com as romãzeiras e os restos de neve, como se, sem eles, fosse mais fácil abandonar a tocaia. Acontece que ali estavam, testemunhas caladas, e ele não iria embora.

Pela vigésima vez naquela tarde, avistou na curva da estrada o homem que devia matar. Andava com passos curtos, o cano preto do fuzil despontando no ombro direito. O que estava de tocaia estremeceu: agora não era uma visão. Era mesmo o homem que esperava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário