domingo, julho 31

110 anos de um cronista da Eternidade

Era como Mario Quintana nomeava a poesia: crônica da Eternidade, loucura lúcida, pedra no abismo, água de beber da concha da mão, pomo da árvore da sabedoria. Ele sabia. Ele, que era leitor de entrelinhas, aprendiz de feiticeiro, corujo colorido com alma de vira-lua, pinta-mundos, operário da escrita trabalhando a café e fumo, farejando a vocação fantasmal da letra h, a personalidade de palavras como cântaro, bem-vinda num poema, abscôndito, palavra de espantar quem lê, quincúncio, palavra de não se saber para quê.

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Poeta de quintanares e filosofanças, chamava ao crítico literário piolho de andorinha. Combatendo cabotinismos, era a favor dos soldados desconhecidos da poesia. Tinha horror a declamadoras e escolas poéticas. Tirava bons motivos de riso dos concretistas. Instado a explicar um poema, respondia perguntando o que será que Deus quis dizer com este mundo. Não gostava de adaptações de romances em histórias em quadrinhos, não gostava de rock. Gostava era de grilos na madrugada, de cigarras, de um realejo de outono, da flauta de um anjo no telhado, e dos sons que vêm de longe, sinos, passos, uma chaleira chiando, risadas de criança depois da aula, escada abaixo.

Íntimo de histórias bíblicas, da Torre de Babel, da vida de Caim, da Arca da Aliança, do Apocalipse, Quintana fez desfilar por seus poemas uma multidão de anjos: anjos da guarda, gloriosos, molhados, depenados, boêmios, dentuços, rechonchudos, anjos de pedra, anjos sonâmbulos galgando degraus, atravessando espelhos, o Anjo Rebelado, o Anjo das Tempestades, o Anjo da Encarnação, o Anjo das Últimas Queixas.

Ele sabia que o que não estava na Bíblia estava em Shakespeare. Que aos olhos de Deus cada ser tem o tamanho de um universo. Que não existem poetas pequenos ou grandes, que cada poeta é o único rei do país de si mesmo. Que o refinamento da simplicidade só vem com o tempo e numa poesia feita de relógios sem ponteiros. Que todos nós temos todas as nossas idades ao mesmo tempo.

A flor da memória se abrindo, lá ia o poeta soletrando seus afetos femininos, as mulheres e os bichos dos bosques de Marie Laurencin, o sorriso de Greta Garbo, meninas andando com ar de antílopes, Gabriela, Lili. O poeta e seus prazeres diletos, o de misturar o acontecido e o imaginado, lembranças de tia Tula, tia Élida, tio Libório, e o prazer de fazer barcos de vento para navegar entre nuvens, o prazer de inventar epígrafes, diálogos, epitáfios, trovas, haicais, versos avulsos, trechos de cartas e diários, versículos bíblicos inéditos, sonetos à maneira de Dirceu ou Antônio Nobre. Sempre cantando, cantando os extramundos, as asas de Nice de Samotrácia, gostando do que roda e faz rodar: cantiga, catavento, chope, carruagem, ciranda, pião.

Devoto de São Jorge, do cavalo e do dragão, o caçula espionado da família, adolescente de internato que nas noites de sábado lia os russos e os simbolistas franceses, Quintana nunca esqueceu a impressão que Camões lhe causou, ainda na infância, com o episódio do Gigante Adamastor, do qual levou depois para sua poesia aquele verso temível tantas vezes repetido: “que o menor mal de todos seja a morte”. Tradutor de Proust, Balzac, Voltaire, Simenon, Maupassant, Verlaine, protestava contra a retirada da língua francesa do currículo escolar. Em matéria de humor, tinha a elegância de um La Rochefoucauld. De quando em quando nostálgico, lamentava o fim dos bondes amarelos, dos carrosséis, das tias solteironas, das cadeiras na calçada e dos milagres arcanos tão mais simples que os mil e um recursos da técnica. Camarada dos ventos e do poema como translúcida ponte entre mundos, antevia o dia em que, pifando todas as tralhas do mundo cibernético, os que sobrevivessem só entenderiam os poetas que falassem de amor.

E ele pintava. Sobretudo azuis e verdes: o azul das torres para suicidas, o verde da ramaria, o azul de um bandolim de abril, o verde de um veneno, o azul de uma anêmona, o verde de um sapo de origami, o azul de uma flor de miosótis, o verde das venezianas. Luzes, Quintana pintava luzes: corredores enluarados, lampiões de esquina, vagalumes e o brilho do olhar da primeira namorada. E vultos, pintava vultos nos antigos retratos pendurados nas paredes, nas assombrações de si mesmo em cada casa habitada, em sótãos e porões.


Cores frias, luzes noctâmbulas, espectros e também pequenas tristezas e solidões ele pintava: a tristeza de uns charcos, a solidão de um coreto deserto, a tristeza de um trenzinho de faz-de-conta emborcado no chão, interrompido em sua fantasia de criança, a solidão de uma pedra solta numa rua de Calcutá, a tristeza do poeta que compõe um soneto para um menininho doente que nem sabe que esse poeta existe, a solidão do velho Tolstoi sentado para morrer num banco da gare de Astapovo.

No mundo dos mistérios naturais, que é este mesmo mundo de aqui e agora, a eternidade se faz num presente sem fim de momentos-tigres incapturáveis. É aí que Mario Quintana vive com Erico Verissimo, Cecília Meireles, Augusto Meyer, esses amigos de sempre, no mais que real – ainda que vago – País de Trebizonda, todos a conversar no esperanto da poesia, entre os Loucos, os Mortos e as Crianças.

Mariana Ianelli

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