quarta-feira, junho 15

O mais belo autógrafo de Fernando Pessoa

No baú de Fernando Pessoa não cabe tudo de Fernando Pessoa. Um poema escrito em 1918, quando o escritor tinha 30 anos, foi descoberto no Brasil, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Como muitas vezes acontece com as histórias do escritor, o breve poema interessa mais por suas circunstâncias do que pelo texto literário, já publicado, embora em uma versão, como pode ser verificado agora, menos definida.

O advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti, maior colecionador de objetos e textos de Pessoa, recebeu de um antiquário uma oferta com um diário de viagens que, em sua última página, incluía um poema de Pessoa. Cavalcanti, autor de Fernando Pessoa, Uma Quase Autobiografia (Editora Record, 2011), o adquiriu para sua coleção sem avaliar a transcendência do poema e se a letra era ou não do genial escritor.

“Cada palavra dita é a voz de um morto”, começa Pessoa. “A verdade é que esse poema é como um sinal do destino, um tiro na consciência”, diz Antonio Sáez Delgado, professor da Universidade de Évora e especialista nas obras de Pessoa.

Em 1913, com 13 anos, o futuro intelectual português José Osório de Castro e Oliveira estava viajando no transatlântico König Wilhelm II, do Rio de Janeiro a Lisboa. Para se distrair durante a travessia, pedia aos viajantes que escrevessem em em seu livro de autógrafos. Era 1913, mas a última página, escrita à mão por Pessoa, data de 1918.

Naqueles tempos, os mares não eram atravessados por muitos navios; de fato, em 1901, Pessoa havia embarcado no mesmo König Wilhelm II para se deslocar da África do Sul a Portugal. Por isso, esse barco e os tempos mais tranquilos tornaram possível que o caderno reunisse depoimentos de vários anos. Também não eram frequentes reuniões de intelectuais, de modo que Osório e Pessoa coincidiram em muitas delas, descobriram que haviam viajado juntos no König e acabaram se tornando bons amigos.

Sáez acrescenta uma coincidência: “Osório era filho de Ana de Castro, republicana e feminista, e um dos contatos mais próximos em Lisboa de Carmen de Burgos, cujo pseudônimo era Colombine, e de Ramón Gómez de la Serna. Na verdade, Colombine também aparece no caderno. Carmen de Burgos publicou uma série de artigos em 1920 e 1921 na revistaCosmópolis, de Madri, dedicados à nova literatura portuguesa e escreve, em As Escritoras, de 1921, sobre Ana de Castro Osório. Um novo elo que coloca Pessoa e os escritores espanhóis no mesmo contexto”.

“Há três ou quatro versões, mas este verso é mais bonito, mais definitivo”, destaca o especialista Joaquín Pizarro.
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CADA PALAVRA DITA É A VOZ DE UM MORTO...
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
Fernando Pessoa 

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