sexta-feira, junho 24

Minhas livrarias

O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de livrarias mortas por todos os lados, um cemitério de livros que jamais serão lidos, de palavras que para sempre assim jazerão, algumas estranhas, outras peremptoriamente compridas, mas lindas, todas agora esquecidas sem qualquer olho que lhes bata em cima, sem qualquer língua que as jogue de novo no meio da rua.

Em mais uma pá de cal atirada pela falta de sensibilidade geral que à raça carioca grassa, a cidade sem letras sepulta a Leonardo da Vinci na caverna onde já estava moribunda, nas catacumbas insalubres do Marquês do Herval. O prédio virou cenário preto e branco da penúria municipal. Ali não se consegue vender nem livro para colorir. Os ratos de livraria sumiram.

Carlos Drummond de Andrade na extinta Leonardo Da Vinci
As obras do VLT cercaram a área, os camelôs tomaram a calçada, os assaltantes bateram a carteira de quem ainda a tinha e o resto ficou por conta do anúncio de que a próxima atração cultural é o livro de unir os pontinhos. Parece que no mundo todo tem sido assim. Ano passado foi a Rizzoli, em Nova York. Agora chegou a vez da Da Vinci, nas fraldas do Morro do Castelo. É a ordem da nova civilização digital: fechem as portas desse perfume antiquado e abafem o mau cheiro dos cupins.

Uma vez, ali no subsolo, nos tempos idos de 1970, eu folheava as páginas do “Women are beautiful”, um livro com a espetacular coleção de fotos de Garry Winogrand, e na necessidade urgente de compartilhar aquelas imagens, uma saraivada de mulheres flagradas de um jeito requintadamente desorganizado pelas ruas de Nova York, eu olhei para o lado. Lá estava Drummond, a quem eu conhecia de vista. Mostrei-lhe uma das fotos, sem dizer palavra, e ele reagiu da mesma maneira, apenas com um sorrisinho discreto, uma maneira de dizer que havia gostado, sim, tudo bem, meu jovem, mas que gostava mesmo era de entrar numa livraria e ali permanecer em paz.

Isso foi no tempo do silêncio, das carruagens dos vice-reis estacionadas no Cais Pharoux, no século das livrarias sem café e sem seção de papelaria vendendo Moleskine, esses truques cada vez mais necessários à sobrevivência da espécie. A Da Vinci, na crença antiga de que um país se faz apenas com homens e livros, desconsiderou as artimanhas. Morreu na contramão das tendências, atrapalhando ainda mais o tráfego na Rio Branco, esfaqueada pela casmurrice de não vender autoajuda, de não vender lápis de cor para recolorir Monet — e todas as demais maldições comerciais que agora lhe servem de lápide no grande cemitério carioca de brochuras, capas duras, pockets, primeiras edições autografadas, encadernações em couro e lombadas bordadas a ouro.

Descanse em paz no limbo da falta de memória e do afeto gentil, onde já estão a José Olympio, a Kosmos, a Muro, a Brasileira, a Francisco Alves, a 7 Letras, os sebos da Tiradentes e todo um tipo de vida que não existe mais. Se é bom, se é ruim, se não é melhor uma biblioteca inteira dentro do Kindle, por favor, pergunte ao João — mas o programa da Rádio Jornal do Brasil, na voz-trovão do Majestade, também acabou. Dê um Google. Durma-se com o aparente inevitável dessas coisas.

Foram-se o pé de jambo, o Caporal Amarelinho, o guarda-noturno, a anágua engomada, o verbo escorreito, o hímen complacente e agora, uma depois da outra, lá se estão indo as lojas de tijolos que vendiam livros de papel. As lágrimas pelo seu desaparecimento são cada vez mais discretas. No início do ano, sem qualquer linha nos jornais, fechou na Rua Miguel Couto a livraria Padrão. Se não fosse um velhinho que saía do sassarico na porta da Colombo e, colegamente, veio me informar, ninguém mais teria notado o desaparecimento deste outro canapé com groselha da civilização local.

Eram livrarias sem marketing, sem programação visual. O livreiro Rui Campos, da vitoriosa Travessa, lembra de ter passado dez anos seguidos pela vitrine da “Glem”, na Senador Dantas, e nesse tempo todo estar sempre lá o exemplar taciturno, jamais comprado, a cada dia mais empoeirado, de “O testículo humano”. Na Rua México, na Galáxia, o amor de Lucien Zahar por seus livros era enorme. Ele não só cobria as bancadas com uma capa de plástico como, ao avesso das livrarias de hoje, cheias de poltronas acolhedoras, espanava quem ficasse muito tempo mexendo nos livros.

O livreiro era um personagem da cidade. Papa-léguas vendia livros no chão dos pilotis da PUC. Na Rua São José, Carlos Ribeiro conversava na porta do seu sebo com Guimarães Rosa. Em Ipanema, Graça e Chico Neiva comandavam a Dazibao com bom humor. Nas redações dos jornais, Ademar França vendia pilhas de edições em papel bíblia com a obra completa em três volumes de Machado de Assis.

O livro era o iPhone que se usava para conversar com outras pessoas.

No mesmo período em que o colunista José Castello, do caderno Prosa, estava sendo surpreendido roubando um Julio Cortazar na Da Vinci, eu, literariamente mais conservador, afanava o que pudesse de Scott Fitzgerald das estantes da Civilização Brasileira, na Sete de Setembro. Escondia um exemplar embaixo da fralda da camisa e, como não havia câmera de segurança nem portas vigilantes, eu ia saindo da livraria discretamente, assim como quem não quer nada, o chapéu de lado, tamanco arrastando — mas o coração aos pulos. O risco valia a pena. Hoje, os ratos são os da Fifa. Ninguém mais quer roubar livros.

Joaquim Ferreira dos Santos

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