domingo, maio 1

Minha cidade

Quantas cidades na minha cidade. Umas cem – que cem, muito mais, só de cidades de trabalho, tem quase esse tanto. De boteco que fechou, umas oito. De gente que fala sozinha no metrô, aposta corrida com escada rolante e que leva duas estações para desembrulhar uma bala, tem menos, mas tem.

Tem a cidade do meu pai, o Centro que a gente chamava de Cidade, com luminosos que encantavam e, para nós, eram paisagem e não anúncio.

Tem a cidade sob a rota dos aviões, dos helicópteros, drones e a cidade onde os homens puxam carroças – coisa que, na cidade onde nasci, bicho é que faz.

Tanta gente e, no entanto, a gente ainda encontra certa moça na esquina. Foram dar nome de santo, milagre acontece.

A cidade da exposição dos tristes que empunham cartazes de Compro Ouro e dos tristes invisíveis que negociam o ouro. A subterrânea dos ratos, dizem haver de dez a doze para cada gente e, se a gente fizer as contas, não dorme mais de noite.

Há a dos crentes, dos insolventes, das mal-amadas que rebolam as últimas esperanças em frente às construções e dos chapeiros que alimentam outras cidades, como a dos doidos mansos e de tantos perdidos, imensa essa, mesmo com tantas placas indicando caminhos.

Há as que diminuem, como as dos bigodes e freiras, convivendo com a dos tatuados, que só faz crescer.

Minha filha foi concebida em uma, meu filho, em outra, os dois nasceram numa terceira e todas estão onde amo Beatriz.

Há a cidade dos (muitos) cinemas e das (cada vez menos) livrarias. Da garapa escorrendo no chão misturada com mijo. Onde se encontra de tudo – meia, tomate, maritaca, avelã, cocaína, sabonete – mas o desencontro é maior.

Na minha cidade há tantas e a verdade é que eu vivo, no máximo, em trinta delas. Sete até conhecem umas coisas minhas, mas outras foram soterradas. Mas na das fábricas aposentadas e cortiços postos abaixo, pouco estive. Numas quinze nem isso, como nunca estive em Montevideo e Moscou.

Quanto mais cidade, menos estrela. Quanto mais para se ouvir, mais surdos. Quanto mais pulmões, menos se respira. Minha desvairada, careta, agressiva, impulsiva, impossível, desgovernada cidade, sem paciência para sentar e ouvir histórias dela mesma.

Vergonha dessa cidade atrasada. Dúvida dessa cidade moderna. Orgulho dessa cidade tão feinha em que, se Jesus aparecesse, teria que entrar no Concurso de Melhor Jesus no Viaduto do Chá – e acabaria em terceiro.

Há 54 anos faço parte de algumas delas, poucas, bem poucas. E de vez em quando, fico até sem saber se é mesmo a minha cidade.

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