terça-feira, abril 12

Bibliofilia

“Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”
Jorge Luis Borges, “O livro” 
Os livros que lemos e os que escolhemos manter próximos a nós tornam-se capítulos de nossa história pessoal. O colecionamento de livros é tão especial justamente por ser motivado em parte como busca de certezas, em meio à velocidade um tanto efêmera do mundo.

O escritor Miguel Sanches, comentando o belo ensaio “Desempacotando minha biblioteca”, de Walter Benjamin, diz:“Se a literatura é o território movediço, a coleção de livros devolve-nos à exatidão das coisas. Não sem alguma ironia, Benjamin cita Anotole France: ‘O único conhecimento exato que existe é o ano de publicação e o formato dos livros’. Entre a desordem e a ordem possível, entre o caos e o cosmos, o colecionador vai transformando, segundo Benjamin, sua coleção em uma ‘enciclopédia mágica’, em que se manifesta um encontro inevitável: ‘o destino mais importante de cada exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com a própria coleção’”. Trata-se de uma experiência mágica.

É, pois, semelhante a uma concha, a construção enquanto morada de filas e pilhas de livros, no sentido em que dá, à concha, Paul Valéry: “Uma concha emana de um molusco. Emanar parece-me a único termo próximo da realidade visto significar propriamente:deixar pender. Uma gruta emana suas estalactites; um molusco emana sua concha” [“O homem e a concha”].

Um dos grandes livros de Umberto Eco dedicados especificamente à paixão pelos livros, à bibliofilia, é A memória vegetal: e outros escritos de bibliofilia. Com ele, Eco, que era colecionador de livros raros, amante dos livros, ele faz uma declaração de amor aos livros, através de textos diversos, entre definições, listas de livros e contos fantásticos.

Porém, enfocamos aqui outro de seus livros, escrito em diálogo e parceria com Jean-Claude Carrière, Não contem com o fim do livro. Os autores debatem uma questão atual e que concerne a todos os bibliófilos: o possível término do livro de papel com o advento dos livros digitais.

Eco foi um grande bibliófilo. Possuia mais de 30 mil volumes distribuídos ao longo de sua casa-biblioteca – em entrevistaconcedida em 2010 a Ubiratan Brasil, para o Estado de São Paulo, contou que, à comum pergunta sobre ter lido todos os volumes de sua biblioteca, tem duas possíveis respostas: “Não. Estes livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que eu já li estão na universidade”; que o jornalista conta ser a resposta preferida do autor . A segunda resposta é: “Não li nenhum”; ao que arremata: “Se não, por que os guardaria?”. Ao lado de outro grande bibliófilo, Jean-Claude Carrière, refletiu sobre a continuidade do livro de papel. Na entrevista, quando questionado sobre a função e a preservação da memória, questão discutida emNão contem com o fim do livro, Eco analisou: estamos perdendo a memória histórica. Diz ele: “Minha geração sabia tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20 anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação. Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade, a evolução põe em risco outra, como a memória”. Na mesma entrevista, uma curiosidade sobre a biblioteca de Eco, que impediu sua secretária de fazer a catalogação dos livros, porque, diz, “a forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa. Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios, e somente eu, e não uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória, mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em outro, esse livro está perdido para sempre”. Sua conclusão, bem humorada, é que é “melhor comprar outro exemplar”.

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