segunda-feira, fevereiro 1

Alfarrabista, patrono dos perdidos

"Quando Diderot morreu, não se conhecia ainda o "Neveu de Rameau". O seu testamenteiro achou também que não devia publicar essa obra, e ninguém teve notícia della senão quando foi feita e publicada na Allemanha, uma traducção, não sei se por Goethe ou Schiller. Dessa traducção alleman é que se fez uma versão franceza, muito discutida e suspeita. Mas onde estaria o manuscripto original? - Perdera-se, ninguém sabia como, nem onde.

Ora, pelos meados do século passado, um remexedor de alfarrábios do cáes de Pariz encontrou no meio de trezentas tragédias em brochuras, precisamente o manuscripto original do "Neveu de Rameau"! É de se imaginar a regalada surpresa de quem fez esse achado feliz, se é que não desconhecia o grande valor do manuscripto de Diderot.

Os alfarrabistas dão, não poucas vezes, taes surpresas aos fregueses. Ainda ante-hontem, justamente no dia em que chegavam ao Brasil os despojos de Pedro II e Thereza Christina, - quiz o acaso que viesse ter às minhas mãos, na Livraria Gazeau, à rua Marechal Deodoro, um volume muito curioso, em cujas folhas se encontram, além de várias coisas interessantes, alguns exercícios de calligraphia e redacção do último imperador e de suas irmans, princezas Januária, Paula e Francisca. O livro era um caderno de suscripção para as obras completas de Lamartine, subscripção de que o grande poeta, decerto em difficuldades financeiras, como sempre, encarregara, em 1861, no Rio, ao sr. L. A. Boulanger, que devia ter boas relações no Paço de S. Christovam, visto que fôra professor dos principes. Para as obras completas de Lamartine (40 volumes por 160$000), haviam assinado no caderno: o imperador e a imperatriz, representados pelo cons. Mordomo Paulo I. Barbosa; marquez de Caxias, José Ildefonso de Souza Ramos, Sayão Lobato, B. A. de Magalhães Taques, barão de Tamandaré, A. de Araujo Ferreira Jacobina, barão de mauá, barão de Piabanha, cons. T. Franco de Almeida, e poucos mais. Todos estes nomes estão em autographos no livro. Provavelmente, a subscripção não foi por diante, porque os subscriptores, que figuram no caderno, não são muito numerosos. Por esse ou por outro motivo, alguém, talvez o próprio L. A. Boulanger, aproveitou o livro para lhe collar em quasi todas as páginas os primeiros exercicios de Calligraphia de d. Pedro II e das princezas Januária, Paula e Francisca, assim como minutas de cartas escriptas pelos principes e pelo imperador, em 1832 e 1833, a seu pai, D. Pedro I, ao avô, o imperador da Austria, e outras. Há tambem pequenos trechos em portuguez e francez, do proprio punho dos priscipes ou para serem por elles copiados. Certa pagina, por exemplo, tem no alto, em bom cursivo, para ser reproduzida, a phrase: "D. Pedro Segundo, Imperador". E, em seguida, pela mão do menino imperador, a mesma phrase reproduzida cinco vezes, com uma letra de principiante, indecisa, tremula e amedrontadiça. Exercicios semelhantes fazem as princezas Paula, Francisca e Januária, notando-se que esta, a mais velha, já tem letra mais segura.

Revista do Brasil , janeiro 1921

Nenhum comentário:

Postar um comentário