sábado, janeiro 16

Assim começa o livro...

Já faz quase um ano que ele tira fotografias de coisas abandonadas. No mínimo, tem duas tarefas a cumprir todos os dias, às vezes elas chegam a seis ou sete, e, toda vez que ele e seu séquito entram numa casa, confrontam‑se com as coisas, as inumeráveis coisas rejeitadas, deixadas para trás pelas famílias que se foram. As pessoas ausentes partiram às pressas, todas elas, envergonhadas, confusas, e é certo que, onde quer que estejam morando agora (caso tenham encontrado um lugar para morar e não estejam acampadas no meio da rua), suas novas moradias são menores do que as casas que perderam. Cada casa é uma história de fracasso — de falência ou de inadimplência, de dívida e de execução de hipoteca — e ele assumiu a missão de documentar os últimos vestígios daquelas vidas desfeitas a fim de provar que as famílias desaparecidas estiveram ali algum dia, que os fantasmas de pessoas que ele nunca vai ver e jamais irá conhecer ainda estão presentes nas coisas descartadas, dispersas em suas casas vazias.

O trabalho se chama remover o lixo e ele pertence a uma equipe de quatro homens empregados pela Imobiliária Dunbar, a qual subcontrata seus serviços de “preservação do lar” para os bancos locais que agora detêm a propriedade dos imóveis em questão. As extensas planícies do sul da Flórida estão repletas dessas estruturas órfãs e, como o interesse dos bancos é revendê‑las o mais depressa possível, s casas vagas têm de ser limpas, consertadas e preparadas para então serem apresentadas aos possíveis compradores. Num mundo que desmorona, num mundo de ruína econômica e de agruras implacáveis e cada vez maiores, remover o lixo é um dos poucos negócios prósperos no setor. Não há dúvida de que ele teve muita sorte de ter encontrado esse trabalho. Não sabe quanto tempo mais ele poderá suportá‑lo, mas o pagamento é decente e, numa terra onde os empregos estão cada vez mais raros, qualquer emprego é melhor do que nada.

No início, ficou espantado com a bagunça, a imundície e o desleixo. Rara é a casa que tenha sido deixada em sua condição original por seus antigos donos. Na maioria das vezes, houve uma erupção de raiva e violência, um furor de despedida, um surto de vandalismo arbitrário — desde as torneiras abertas nas pias e nas banheiras, onde a água transborda, até paredes afundadas a golpes de marreta, ou cobertas com pichações obscenas, ou marcadas por furos de bala, para não falar dos canos de cobre arrancados, dos tapetes com manchas de cloro, dos montes de excremento depositados no chão da sala. Esses são, talvez, exemplos extremos, atos impulsivos provocados pela raiva dos expropriados, manifestações de desespero repulsivas, porém compreensíveis, e no entanto, ainda que nem sempre se veja dominado pela repulsa quando entra numa casa, ele nunca abre a porta sem um sentimento de apreensão. Invariavelmente, a primeira coisa que tem de enfrentar é o cheiro, arremetida de um ar azedo que invade suas narinas, os aromas ubíquos, mesclados,de mofo, leite rançoso, palhas bolorentas da caminha de um gato, vasos sanitários com crostas de imundície e comida podre na bancada da pia da cozinha. Nem mesmo o ar fresco que se der rama pelas janelas abertas é capaz de varrer os cheiros. Nemmesmo a mais meticulosa e circunspecta faxina consegue apagar

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