quinta-feira, abril 30

Os livros são transportes

Igor Morski

Ler em público e em particular


O Buda do Luxemburgo, Francine Van Hove

Eu acredito que nós temos a obrigação de ler por prazer, em privado e em lugares públicos. Se ler por prazer, se os outros nos vêem lendo, então nós aprendemos, nós exercitamos nossa imaginação. Nós mostramos aos outros que a leitura é uma coisa boa.
Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. Para usar bibliotecas, para encorajar outros a usar as bibliotecas, para protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não tem bibliotecas de valor, então você não valoriza a informação, cultura ou sabedoria. Você silencia as vozes do passado e prejudica o futuro.
 Temos a obrigação de ler em voz alta para os nossos filhos. Para ler coisas que eles gostam. Para ler histórias que já estão cansados ​​de conhecer. Para fazer as vozes, para torná-lo interessante, e não parar de ler para eles, apenas porque eles aprendem a ler para si mesmos. Use o tempo de leitura em voz alta como tempo de ligação, como o tempo quando não há telefones, quando as distrações do mundo são postas de lado.
 Neil Gaiman

Exposta a Bíblia do tamanho da cabeça de um alfinete

Uma cópia da Bíblia hebraica do tamanho de uma cabeça de alfinete está sendo exposta no Museu de Israel em Jerusalém. A chamada nano-Bíblia - a menor versão do livro religioso no mundo - contém 1,2 milhão de caracteres esculpidos em um chip envolto em ouro. "Escrito" com raios de íon por engenheiros do Technion (Instituto Israelense de Tecnologia), em Haifa, o "livro" está sendo exposto por ocasião do 50º aniversário do museu. "Se você ampliar as letras em pelo menos dez mil vezes, poderá ler os caracteres", diz Adolfo Roitman, um dos curadores do museu.

Pequenas livrarias superam grandes redes

pictorialautobiography:

Painting by Kenton Nelson
Kenton Nelson
O número de livrarias independentes nos Estados Unidos cresceu 27% desde 2009, chegando a 2.094 no ano passado. Se ainda parece pouco comparado ao pico de cerca de 4 mil nos anos 1990, antes da invasão das grandes redes, representa uma evolução importante sobre as 1.400 da última década. As vendas em lojas também estão em alta: subiram cerca de 8% anualmente desde 2012. "Há uma percepção errada de que as livrarias independentes estão em perigo. Estamos em um ótimo momento", diz Jessica Bagnulo, proprietária da Greenlight, livraria aberta no Brooklyn, em 2009.
(Fonte: Folha de S. Paulo)

Entre dezembro de 2011 e dezembro de 2012, houve uma redução de 12% no número de livrarias em todo o Brasil. Eram 3.481 e agora são 3.073. 

Biblioterapia

Terapia é cuidado no sentido mais amplo possível, é atenção, é encaminhamento para a cura, é busca da saúde e da salvação. Retomando as origens etimológicas, o verbo latino colere expressa todos os tipos de cultivo, incluindo-se o culto religioso. Sócrates encarava a filosofia como uma terapia intelectual, que auxiliava os homens a cultivarem a inteligência e a vontade, recuperando o caminho do equilíbrio interior.

Cuidar de uma pessoa é um ato terapêutico, um ato sagrado. Saúde física, amor à cultura e salvação estão muito próximas. Para cuidar da saúde, não poucas vezes precisamos rever nossos hábitos, nossa conduta, nossa relação com a natureza, com os outros seres humanos, com os valores pregados ou rejeitados pela sociedade em que vivemos.

É terapêutico religar-se ao sol, às águas puras, é terapêutico alimentar-se em casa, com os familiares, com os amigos, é terapêutico ler bons livros!

Existem dezenas, centenas de terapias ortodoxas e alternativas, naturais e exóticas, suaves e radicais. Todas elas com o objetivo de contribuir para que o ser humano atinja a felicidade, esse “impossível necessário”, como diz o filósofo Julián Marías. Da aromaterapia à cromoterapia, da arte-terapia à apiterapia (baseada no consumo do mel), da laborterapia à risoterapia, praticamente tudo pode tornar a vida humana mais humana.

Mas falemos de biblioterapia.

Temos a book therapy, entre os norte-americanos, e a livre thérapie, entre os franceses. Mas não se trata de uma nova ciência, pois é tão velha quanto o alfabeto e o pergaminho.

Não é de hoje que muita gente encontra na leitura de um livro a chave para entender seus problemas existenciais, para avaliar os desafios da vida, para lidar com as dificuldades naturais da convivência. Não um livro qualquer, mas um livro em cujas páginas eu veja refletido meu rosto, ouça meus diálogos internos, encontre em cada palavra uma pista, uma isca, um petisco!

Ler um poema de amor pode ser a melhor forma de nos apaixonarmos. (Como não se apaixonar depois de ler Pablo Neruda?!). Devorar um tratado de filosofia pode ser o melhor modo de preparar-nos para uma nova etapa de vida. (Como não se sentir interpelado pelas reflexões de um Kierkegaard, de um Sartre, de uma Simone Weil?!).

Ler é uma forma privilegiada de entender o mundo, de entender-se um pouco melhor.

Leitura cura.

Gabriel Perissé

quarta-feira, abril 29

Nosso farol

Os dias

Alguns dias depois de ter tomado posse da suntuosa mansão, Ernst Kazirra, ao voltar para casa, viu de longe um homem que, com uma caixa nos ombros, saía por uma portinha secundária do muro e colocava a caixa num caminhão.

Não conseguiu alcançá-lo. Então tomou o carro para segui-lo. E o caminhão rodou por muito tempo até a extrema periferia da cidade, parando à beira de um profundo vale.
Kazirra desceu do carro e foi ver o que estava acontecendo. O desconhecido tirou uma caixa do caminhão e, após ter dado alguns passos, atirou-a no barranco que estava cheio de milhares e milhares de caixas iguais.

Aproximou-se do homem e disse:
-- Vi que você tirou aquela caixa do meu jardim. O que tinha lá dentro? E o que significam todas estas caixas?

O homem olhou-o e sorriu:
-- Ainda tenho mais no caminhão, para jogar fora. Não sabe? São os dias.
-- Que dias?
-- Os seus dias.
-- Os meus dias?
-- Os seus dias perdidos. Os dias que você perdeu. Você esperava por eles, não esperava? Eles vieram. E o que você fez com eles? Olhe, eles estão intatos, ainda cheios. E agora...

Kazirra olhou. Formavam um monte imenso. Desceu pela escarpa e abriu um.

Havia lá dentro uma estrada de outono e, longe, Graziella, sua noiva, que ia embora para sempre. E ele nem a chamava.

Abriu uma segunda caixa. Havia um quarto de hospital e, na cama, seu irmão Giosuè, que estava muito mal e o esperava. Mas ele estava viajando a negócios.

Abriu uma terceira caixa. No portãozinho da casa velha e pobre, via Duk, o fiel mastim, que o esperava havia dois anos, reduzido a pele e osso. E ele nem pensava em voltar.

Sentiu alguma coisa aqui, na boca do estômago. O carregador mantinha-se ereto à beira do vale profundo, imóvel como um justiceiro.

-- Senhor! – gritou Kazirra. – Ouça-me. Deixe-me ficar com pelo menos este três dias. Suplico-lhe. Pelo menos estes três. Sou rico. Dou tudo o que quiser.

O carregador fez um gesto com a mão direita, como se indicasse um ponto inatingível, como se quisesse dizer que era tarde demais e que nenhum remédio seria possível. Depois esvaiu-se no ar e, nesse momento, desapareceu também o gigantesco monte de caixas misteriosas. E caía a sombra da noite.

A primeira grande biografia


O escritor galego Ramon Del Valle-Inclán (1866-1936), em fotografia de 1930, terá sua primeira grande biografia. Manuel Alberca publica "A espada e a palavra"' (Tusquets), onde derruba mitos e fixa as chaves principais da extravagante vida de um dos gênios da literatura espanhola.

Para o Dia das Mães, bibliotecas em presídios

O Children Book Council está preparando uma ação especial para o Dia das Mães, em parceria com a ONG UnPrision, dedicada a capacitação e orientação de presidiárias, para criar livrarias infantis para que mães encarceradas possam ler para seus filhos em creches instaladas em prisões de dez estados dos Estados Unidos. Dezessete editoras associadas ao CBC vão apoiar a iniciativa com a doação de 45 títulos selecionados para cada biblioteca e outros 15 títulos para crianças mais velhas para que elas possam ler durante as visitas. Os livros serão acompanhados por guias de leituras, que trazem dicas de interação entre mãe e filhos.
(Fonte: Publishers Weekly) 
Chichi Huang

A decisão é sua

'Se a palavra é substituída pela imagem, a imaginação corre perigo'


Em diálogo com o diretor do jornal El País,Antonio Caño, o escritor Vargas Llosa adverte sobre os riscos da cultura digital
Se o mundo continuar o processo no qual a palavra escrita está sendo substituída pela imagem e pelo audiovisual, corremos o risco de que desapareça a liberdade, a capacidade de refletir e imaginar, além de outras instituições como a democracia, 
Perante 300 pessoas, muitos deles jovens, Caño perguntou ao prêmio Nobel peruano se concordava com o prognóstico do desaparecimento do jornal tradicional e dos livros impressos. O escritor disse que é uma possibilidade, mas não acredita nisso. Se acontecer, insistiu, o resultado seria trágico sobretudo para a cultura da liberdade: “Seria o pesadelo de Orwell, de uma sociedade transformada em robôs, onde tudo é organizado por poderes invisíveis”. Embora não acredite que isso possa acontecer porque está convencido de que sempre haverá gente suficiente para ler livros e jornais em papel. Seu temor é que a cultura da tela seja cada vez mais puro entretenimento e “isso aboliria o espírito crítico”.

Faz esta advertência ao considerar que a palavra lida, a linguagem comunicada de maneira impressa, tem um efeito no cérebro que completa e complementa o que é lido. Por outro lado, o autor deConversa na Catedral, afirmou que “as imagens não produzem o mesmo mecanismo de transformação da maneira que as palavras, ao serem lidas, criam imagens. Na leitura há um esforço criativo e intelectual que quase é eliminado com o visual”.

O autor de A Guerra do Fim do Mundo defende a criação de mecanismos para que isto não aconteça: “Porque pode acontecer um retrocesso para a barbárie; um mundo sem liberdade, manipulado a partir dos poderes, tendo a tecnologia a seu favor”. O escritor deixou claro que é partidário da tecnologia, à qual agradece muitas coisas, e vê outras muito positivas, como o acesso à cultura.

Mario Vargas Llosa, que alguns de seus amigos chamavam de Varguitas e ganhava a vida no colégio militar Leoncio Prado escrevendo histórias picantes para ganhar uns trocados, continua sendo aquele adolescente cujo amor pela literatura o faz viver cada episódio de sua vida com as letras em um acontecimento digno de alvoroço. Acaba de voltar de Lima, onde viveu nos últimos meses depois de sua arriscada aventura como ator de teatro, e antes de ir à Ifema falar com o diretor de EL PAÍS, encontrou-se em sua casa com sua editora, Pilar Reyes, da Alfaguara. Enquanto a abraçava, falou com aquele alvoroço adolescente de Varguitas:

- Já tenho o título! Vai se chamar Cinco Esquinas!

É o autor de títulos que chegaram a se tornar frases comuns, como A Cidade e os Cães, A Guerra do Fim do Mundo e A Festa do Bode, todos eles escolhidos assim que começou a escrever, pois ter o título desde o princípio serve como guia para a escrita, confessou depois a Caño. Já este último, Cinco Esquinas, ofereceu resistência, um dos mais difíceis, até que a solução veio na noite anterior, ao chegar a Madri, sua segunda residência na Terra depois de Lima. Um título, disse, organiza tudo, coloca em circulação sua mão para continuar com as incontáveis correções que faz nos sucessivos rascunhos de seus manuscritos. Sempre, como aconteceu com O Paraíso na Outra Esquina, esses títulos resistem a aparecer; “e sobretudo nesta ocasião: vou começar com o segundo rascunho e já tenho um título”. Como uma criança, o escritor de 79 anos oferecia a sua editora esse furo como um presente que mais tarde compartilharia com a audiência do Fórum do Espanhol.

Em relação ao entusiasmo vivido hoje pelas séries de televisão que alguns homologam a função que desempenha a literatura, o criador de A Festa do Bode acha que são produtos bons e são divertidos, mas “totalmente efêmeros”. Por isso considera importante defender o livro, “a leitura não só entretém, mas produz um efeito mais profundo, cria cidadãos mais responsáveis e críticos, e contribui para um mundo melhor”.

terça-feira, abril 28

Todos são necessários


Francine Van Hove
Francine Van Hove
Os livros ruins também são necessários. São os mais excitantes; eles dão-nos vontade de recomeçá-los, convidam-nos a intervir
Jean Paulhan (1884-1968)

No início do ano

No início do ano, uma donzela do Oriente diz ao seu amado esposo:

– Não caminhes em direção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.

Mas o amado nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.

Seguiu assim o homem em direcção a leste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa pela tal amante mais jovem, mais bela, mais inteligente.

Na manhã seguinte, ao levantar-se, a amante disse-lhe:

– Não caminhes em direcção ao Oeste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o homem nada ouviu, pois, nesse momento, pensava na sua esposa legítima que o esperava.

Seguiu assim o homem em direcção a oeste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa, com alegria e calor, pela sua esposa.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, ouviu da sua amada esposa, uma donzela do Oriente:

– Não caminhes em direção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o amado nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.

Seguiu assim o homem em direção a leste e depois a oeste e depois a leste e assim sucessivamente, dias e dias, meses e meses, anos e anos – e não morreu.

A morte surgiu apenas quando o homem já velho e sem forças ficou incapaz de se mover – quer para leste quer para oeste.
Gonçalo M. Tavares (revista revista Visão n.º 879)

Começando bem o dia

Victoria Antolini

'O Brasil ainda não entendeu o que é ter uma casa deste porte'


Nos últimos dias, quem tem o hábito de frequentar a Biblioteca Nacional notou duas mudanças significativas na rotina da instituição. A primeira foi a diminuição sensível do número de funcionários. Em março, 107 servidores foram dispensados para reduzir gastos (todos os 79 estagiários, além de 28 terceirizados de nível superior). A segunda está sobre a própria cabeça do visitante: acabou de chegar à BN a claraboia central totalmente restaurada, trabalho que levou meses para recuperar o vitral centenário, em deplorável estado de conservação por anos.

Apesar do ajuste orçamentário que atinge todos os ministérios desde o início do ano, e que forçou a Biblioteca Nacional a cortar servidores, esta foi uma semana que deixou animado o presidente da instituição, o cientista político Renato Lessa. Além de receber as claraboias tinindo, ele anuncia que as obras para a recuperação do sistema elétrico finalmente começaram (o que é fundamental para a implantação de um moderno sistema de refrigeração no prédio, demanda estrutural mais urgente da biblioteca). Foi na última semana, também, que ele lançou o portal “Brasiliana Fotográfica”, feito em parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS), que disponibiliza 2 mil fotos históricas para consulta pública (www.brasilianafotografica.bn.br), imagens selecionadas da Coleção Gilberto Ferrez, por exemplo, Coleção Dom João de Orleans e Bragança ou Coleção Teresa Cristina Maria, esta registrada na Unesco como Patrimônio da Humanidade. Nos primeiros dias, o site já teve 850 mil acessos.

Leia a entrevista com Renato Lessa

segunda-feira, abril 27

Há livros que matam de medo até o diabo

También los demonios se asustan leyendo historias de miedo (ilustración de Fernando Rossia)

'Estagnação' de leitores em Portugal


O diretor-geral do Livro, das Bibliotecas e Arquivos, José Manuel Cortês, recomendou a realização de um estudo dos não-leitores das bibliotecas públicas, pelo fato de estas registarem uma "estagnação de frequentadores" durante o colóquio "O lugar da Cultura -- Modelos e Desafios", no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Segundo Cortês, que citou dados de 2013, cerca de 14% da população de cada um dos concelhos está inscrita numa biblioteca pública e, do total de inscritos, apenas 4,7% são frequentadores.

Temos de apostar na leitura, que é uma forma essencial de fazer chegar a cultura às pessoas, e é uma forma essencial de construção da democracia. As bibliotecas públicas são lugares da democracia
Cortês sublinhou que estes números "estão longe do que é aceitável para uma rede" da envergadura da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) que, no continente, integra, atualmente, 204 bibliotecas municipais., mas dispõe de menos de um livro por habitante, abaixo da média fixada pela Unesco, que é de dois a três livros por habitante.(Fonte: Agência Lusa)

Da necessidade


Às vezes tenho necessidade de livros. De estar rodeado de livros, livros e mais livros. Nesses dias vou até uma livraria e respiro fundo. Fico melhor. Hoje vim até uma biblioteca. O cheiro das bibliotecas é diferente. Não me agrada tanto, para ser sincero. Prefiro o cheiro a livros novos, intactos.
Manuel A. Domingos

Ler para os filhos

O rio


O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.

O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.

Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:

- Vou dizer ao velho!

Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.

José Lins do Rego (1901-1957)

domingo, abril 26

Perfeita companhia

Niklas Asker
Vou pular a discussão de quem é o melhor: livro de papel ou eletrônico? É claro que essa questão é interessante. Até inteligente. Mas prefiro falar da leitura independentemente do seu suporte. Então narro algumas graças que a leitura me deu por toda a vida. Também já escrevi em postagens anteriores, e não me furto a escrever novamente, que o prazer de ler nada tem a ver com se preparar para o vestibular, ou prestar concurso para emprego. Ler literatura não garante ascensão para ninguém. Fosse verdade que a leitura ajudasse, escritores, redatores, jornalistas, revisores, editores, professores estariam magnificamente valorizados no mercado de trabalho.

Nunca li literatura acreditando que ela seria um caminho para o dinheiro. Li por desfrute. Li para conhecer novas paisagens, culturas diferentes, modos de vida do passado, fantasias de futuro. Também para sonhar e me emocionar. Leio porque aprendo com a amizade entre um esquimó e seu cachorro cego. Aprendo com uma personagem da remota Moscou do século XIX, do mesmo jeito que aprendo com a trama de um romance ambientado na Los Angeles de 2014. A leitura literária ensina com profundidade e - muito importante - de forma lúdica. Quer abrir a cabeça? Procure pela literatura.

A memória da leitura me socorreu em momentos duríssimos da vida. Logo que perdi meu pai, passei dias mastigando algumas linhas do Carlos Drummond: Do lado esquerdo carrego meus mortos. / Por isso caminho um pouco de banda. Em outra ocasião quando senti ter sido injustiçada em uma situação de trabalho, foi Mario Quintana quem veio correndo: Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão. / Eu passarinho! A literatura também consola. E como! Mas o melhor da leitura literária é nos sensibilizar para o outro. Personagens de papel ou de e-book capturam nossa atenção para suas particularidades e diferenças. Você entra na pele de um prisioneiro em Alcatraz, no destino de uma heroína, no coração de um perdedor.

É fato que sempre haverá quem diga: “Ler me dá sono. Só faço obrigado.” É um direito! Mas que pena! Para mim, e talvez para você, a leitura é companheira perfeita. Ela nunca se nega a afagar nossos sentidos. Faz mais ainda: desperta o sexto sentido. Aquele que não cabe na lógica dura, nos cálculos pragmáticos. Ler é a cadeira de balanço da alma.

Fernanda Pompeu 

Nada de improviso

Oleg Shuplyak, Leitora na poltrona
São necessários anos de leitura atenta e inteligente para se apreciar a prosa e a poesia que fizeram a glória das nossas civilizações. A cultura não se improvisa.
 Julien Green 

O afegão intranquilo

Tudo começa com uma espera. Uma espera que parece infinita, beckettiana. Encostado ao parapeito de uma ponte, Dastaguir, um velho exausto, sujo e com o turbante desfeito, aguarda a passagem de um carro que o leve até Karkar, a mina de carvão onde o filho, Mourad, trabalha há quatro anos. A seu lado, Yassin, o neto, ora brinca ora faz birra: tem fome, quer água. As horas passam; a boleia não chega. Perto, numa guarita minúscula, há um guarda mal-disposto e facilmente irritável, um homem fechado na sua própria solidão. Mais à frente, numa lojeca manhosa, em contraponto, um comerciante gentil capaz de romper, sem forçar, o círculo de arame farpado que é o silêncio de Dastaguir. O círculo da sua mágoa.
Temos portanto um velho, uma criança, dois homens. E mais nada. À volta, só montanhas áridas, poeira, vento, pedras negras, urtigas. O Afeganistão em meados dos anos 80. Sobre a ponte velha passa um camião com uma estrela vermelha na porta. Saberemos mais tarde que os soviéticos arrasaram uma aldeia. Mas, fora isso, podia ser o Afeganistão de há muitos séculos. Podia ser o Afeganistão de hoje.

Enquanto olha para a estrada, naquela ponte inútil que atravessa um rio que secou de vez (querem melhor metáfora do país?), o velho masca naswar, uma espécie de tabaco com propriedades narcóticas, de cor esverdeada. Masca e cospe. Masca e cospe. Masca e ralha com o neto. Espera e afunda-se em sonhos breves, delírios que o levam aos poços da memória e às portas do inferno. E o pior não é a espera. O pior é o que tem para dizer quando, na mina, o filho lhe perguntar: "– Pai, o que te trouxe aqui?"

O que o trouxe ali, o motivo da viagem, é só um. Contar-lhe que os russos bombardearam a aldeia e toda a gente morreu. A mãe, a mulher, o irmão, os amigos, todos foram mortos. A aldeia está em ruínas e toda a gente morta. Menos eles, Dastaguir e Yassin. O velho sofre por antecipação. Como é que se partilha uma dor tão grande? E como é que se explica que Yassin está vivo mas ensurdeceu, por causa das detonações? Para o rapaz, o mundo é mudo desde o dia em que os tanques «substituíram as vozes das pessoas e foram-se embora». Já nem o avô, quando lhe ralha, consegue ouvir. «Os homens perderam a voz», diz Yassin. «O mundo tornou-se silencioso… Mas, nesse caso, porque mexem os homens os lábios?»

Quando um camião passa, finalmente, só Dastaguir segue viagem até à mina. Pelo caminho, o velho há-de apoquentar-se por ter deixado o neto aos cuidados do comerciante, um homem gentil mas que acabou de conhecer. Na estrada poeirenta, descerá de novo aos abismos do sonho e da memória. Chegará ao seu destino e ao desfecho da narrativa, um final em aberto – talvez para que os leitores o resolvam. A mina é, literal e simbolicamente, um buraco negro. 

Engole tudo, incluindo o próprio Mourad. O ar é denso e o velho perde as poucas forças que lhe restavam. Surge um contramestre sinistro, montanha de força, hipocrisia e poder. O velho resiste-lhe e hesita, até ao limite, sobre o que dizer a Mourad. Não será melhor, para ele, a ignorância? Dastaguir transporta a verdade junto ao peito, como um punhal. E a tragédia é essa: tem que o espetar no coração do filho, mas não sabe como.

Marcador que marca

Aberta a maior feira de livros da América Latina

Inauguración de la feria del libro de Buenos Aires

A Argentina sempre teve fama de ser um país de ávidos leitores. E não em vão, Buenos Aires se pretende ser a cidade com mais livrarias do mundo por número de habitantes. Essa paixão pelas letras chega ao paroxismo cada ano por essa época. E a caótica capital argentina se transforma durante quase três semanas nessa "Cidade das Palavras", que assinala o ensaísta Alberto Manguel.

A 41ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires começou ontem com o mesmo propósito de cada ano: convocar editores, escritores, agentes literários, tradutores, distribuidores e dezenas de milhares de leitores ao evento literário mais relevante da América do Sul.

Mas segundo o jornal Perfil, no suplemento "O estranho e misterioso negócio do livro", de Leandro Ceruti, ano após ano, mais e mais livros são produzidos, muitos mais do que são lidos e vendidos.


Esteves lembra Diderot. "Em 1764 declarou que, em dez livros, cinco perda de quatro pagar de volta e apenas um é bem-sucedido." Nos dois séculos e meio que se seguiram a essa decisão, a indústria editorial não tem feito outra coisa senão confirmá-la. Com muita sorte, um em cada dez livros é bem sucedido. Talvez Diderot resultasse generoso mesmo no mar de títulos com o mercado inundado de livrarias, bancas de jornal e depósitos. Em poucos dias, mais de um milhão de pessoas começam a visitar a Feira do Livro de Buenos Aires e serão aqueles que levantarão a média que as estatísticas continuam a mostrar na edição em língua espanhola. Porque, na Argentina e no México, por exemplo, os livros que vendem mais de 10 mil cópias não chegam a cem em um ano. Porque argentinos, mexicanos e colombianos - a mesma média acusam chineses e russos - não gastam, em média, per capita, 7 dólares por ano em livros, ou deixa de comprar três títulos na época. No ano passado, na Argentina apenas quatro títulos chegaram ao mercado com mais de 100 mil cópias e quase 70% da nova publicados são abaixo de 3 mil (o número "real" neste "indústria"?). "Manual de sobrevivência para editores no século XXI", a recente obra do pesquisador Fernando Esteves, se destaca como a ponta de lança da coleção A Vida e os Livros, complementada por outros títulos, é um marco dentro do evento.
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sábado, abril 25

Somos todos leitores e.. voyeurs

Caçador e vítima


Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaximim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
- a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
- a água na boca é a mesma das lágrimas.

Um bom tempo para ler

Os livros vivos



Eles estão vivos. Falam em diversos idiomas. Escondem-se. Dão sustos. Fogem correndo. Voltam humildes. Ficam esgotados e se recuperam. Morrem, porque estão vivos. Ressuscitam, porque estão vivos.

Estão vivos, andam ao meu redor, me acordam no meio da noite, me levam para passear. Propõem charadas. Cantam, contam, esquentam minha frialdade, matam minha solidão, torturam meu tédio.

Vivos, falam o tempo todo da vida, e da morte. Falam de pontos e linhas. Falam de curvas e retas. Falam de nuvens e pedras. Não temem nenhum assunto. Tudo o que é humano lhes é familiar.

Vivos estão debaixo da cama, enquanto roncamos e sonhamos, sem saber o que planejam. Planejam tomar nosso cérebro. Ocupar nosso coração. Planejam reconduzir nossos pesadelos. Planejam atuar sobre os nossos planos.

Vivos estão sobrevoando as casas, enquanto rastejamos. Vivos estão no porão, no armário trancado, na sala sem ar.

Vivos, compulsivos, cumulativos. Invasivos como doenças. O que são? O que são? Não se deixam levar, não facilitam a nossa vida.

Nem sempre estiveram tão vivos. Antes, eram pontos obscuros em mentes diferentes, insurgentes. Eram intuições vagas, imagens confusas, palavras soltas, diálogos cortados.

Mas quando se tornaram coisas vivas, conseguiram gerar outras vidas. São multiplicativos, insaciáveis, milagrosos.

Quando estão em nossas mãos, essas coisas vivas ganham novos formatos. Emitem sons de todos os tipos, belos e horrorosos, insinuantes e detestáveis, harmoniosos e desafinados.

Porque são vivos, eles me perturbam, eles nos perturbam. Você e eu não podemos evitá-los, não podemos mais viver sem eles. A vida que transborda neles é a vida que nos falta viver. Bebemos neles a vida que queremos ter.

Se vivos não fossem, não teriam essa força toda. Não estariam tão próximos de nós, mais próximos do que os animais de estimação, mais íntimos do que muitos daqueles que se dizem amigos nossos.

Vivos, podem ser queimados. Vivos, podem ser vendidos, doados, emprestados, esquecidos, reencontrados.

Vivos estão. Mais vivos do que pensamos. Mais vivos do que gostaríamos, talvez. Gritando, uivando, gemendo, os livros vivos nos fazem pensar além da conta, nos fazem lembrar realidades que gostaríamos de eliminar, os livros vivos nos fazem imaginar fora de hora.

Vivos estão os livros, objetos que deixaram de ser objetos.

Vivos livros, vivos quando os lemos. Ou até mais vivos, quando os deixamos de lado.

Livros vivos que vivem em mim, e em nós.

Gabriel Perissé

'Bebeteca' ambulante

Sophia


Eu saía da água junto aos joelhos dela, a sentir-me translúcida, levíssima como o cefalópode com muitos braços, uma galáxia de braços. Não era para ela, era com ela. Poucas coisas são tão alegres como o egoísmo de duas crianças síntonas no seu brinquedo, que era o mar.
– A partir de certa idade, Maria, o mar rejeita-nos.
– Ora, Sophia, é só a água na cara que a enerva, isso há-de passar.

Não era caridade, era compaixão. Compaixão com ela do que um dia havia de me esperar. O mar hostil.

sophia
Cena do documentário "Sophia de Mello Breyner Andresen", de João César Monteiro (1969)

Íamos já a caminho de casa, do delicioso spaghetti frio que ela temperava com ervas e azeite virgem, alcaparras ou anchovas, do peixe frio marinado em calda, como se come no mar, comido no alpendre, debaixo da renda de heras. E da noite, que já avermelhava no horizonte marinho do almoço tardio.

Da noite, em que vestidas de lavado, cabelo desamarrado, o dela uma sedinha solta, o meu afrodionisíaco, como ela o dizia, roupas longas, soltas e largas, falávamos de tudo e de nada, até às mais altas horas, que lhe convinham, a ela e a mim. Bebíamos vinho branco gelado, não havia retsina, pena para ela, bom para mim, que não gosto de quase nada do que vem da Grécia, excepto a comida e as azeitonas talhadas com alho e tomilho, o que a chocava, mas não tanto quanto seria de esperar.

– Ruínas, por mais belas, amarguram-me, Sophia.

Falávamos na noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; do tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a facções políticas diferentes. Era a força de indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos, de amigos e desamigados. Desse mundo ginecêutico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, passe a solenidade.
Porque não éramos solenes.

("Sophia: Vozes", de Maria Velho da Costa, prefácio ao livro "Evocação de Sophia")

sexta-feira, abril 24

Sabedoria

Livros no cárcere

Antes de contar como passei a primeira noite de cárcere, perdi-me logo, como, em divagações, que o leitor, já afeito com o meu gênio, aceita com benevolência.

Às nove horas da noite, os guardas correram os ferrolhos, e rodaram a chave da pesada porta do meu cubículo, a qual rangia estrondosamente nos gonzos.

Estava sozinho. Sentei-me a esta mesma banca, e nesta mesma cadeira. Estavam aqui defronte de mim alguns livros. Recordo-me de Shakespeare, Plutarco, Sénancour, Bartolomeu dos Mártires, e uma Tentativa sobre a Arte de Ser Feliz por J. Droz. Folheei-os todos, e de todos me fugia o espírito para entrar no coração, e sair de lá em ânsias do inferno que lá ia.

À força de contenção de alma consegui ler e meditar algumas páginas da Arte de Ser Feliz. Em que local eu buscava a árvore dos bons frutos! É este um livro de filosofia racional que preparou o ânimo de seu autor para mais seguras e levantadas crenças na filosofia de Jesus Cristo.

Fez-me bem esta leitura. Principiei logo a pôr em português as vinte páginas que lera, com o intento de fazer publicar o livro inteiro em folhetins.

Fui às três horas da manhã procurar no sono a restauração das forças corporais, que as do espírito, até esta hora, nunca as senti indignas da ousadia com que ele se arremessou a perigosas batalhas com o mundo.
Camilo Castelo Branco, in Memórias do Cárcere

O livro pode ser nossa piscina

Andrea De Santis
"Boiando", finalista do Salão do Livro de 2014 em Paris

Sete motivos para viver entre livros

As razões de um tradutor francês para acumular quarenta mil volumes em sua coleção, e o que podemos aprender com ele

Poucas compulsões de consumo são tão bem vistas socialmente quanto o desejo de acumular livros. Ao contrário dos admiradores de sapatos, perucas, miniaturas ou outros bens de consumo supostamente fúteis, que são forçados a dedicar-se a suas paixões de forma quase clandestina para escapar do julgamento alheio, fãs de livros podem disfarçar seu descontrole consumista como uma implacável sede de conhecimento. O advento dos livros digitaistornou a vida do aspirante a bibliófilo ainda mais fácil. Se antes era necessário enfrentar as barreiras do espaço, hoje uma biblioteca de dezenas de milhares de exemplares cabe no bolso de qualquer paletó, ou mesmo num celular. Um cartão de memória do tamanho da unha de um dedão pode armazenar mais de trinta mil livros – um acervo equivalente feito de papel exigiria um apartamento inteiro para abrigá-lo. O custo também deixou de ser um empecilho. É possível encontrar uma infinidade de obras disponíveis gratuitamente na internet, em domínio público, e o preço dos exemplares novos, sobretudo os importados, é um convite à compra por impulso.

A escolha entre os livros físicos e os digitais é uma questão de gosto, e um detalhe irrelevante diante da meta de formar a biblioteca ideal. Na busca por esse objetivo, tanto os fanáticos por tecnologia quanto os fetichistas do papel têm de se render aos ensinamentos dos grandes colecionadores do passado. O tradutor e editor francês Jacques Bonnet, dono de um acervo de mais de quarenta mil volumes, é uma das maiores autoridades no assunto. Sua coletânea de ensaios “Fantasmas na biblioteca” (Civilização Brasileira, 160 páginas, R$ 29,90) reúne nove textos sobre seu amor pelos livros. Qualquer comprador compulsivo de literatura deveria fazer o enorme sacrifício de acrescentá-la a sua coleção. Com base nos ensaios de Bonnet, elaborei uma lista com suas sete principais razões para viver entre livros. Elas valem tanto para quem já se dedica à formação da biblioteca perfeita quanto para quem apenas gosta de livros, e estava à procura de uma desculpa para transformar seu apreço em loucura.

1) O prazer da posse

Aprendemos a ler na infância e, se conseguirmos escapar das inúmeras outras tentações que roubam a atenção das crianças, é possível desenvolver desde cedo uma paixão pela literatura. A compulsão por livros, porém, só chega mais tarde. Nossa velocidade de leitura se mantém constante, o tempo dedicado a ela se torna escasso e passamos a comprar mais livros do que somos capazes de ler. É uma decisão questionável, ao menos do ponto de vista econômico. "Livros são caros na compra; não valem nada na revenda; são caríssimos quando queremos encontrá-los e estão esgotados˜, escreve Bonnet. O custo é compensado pelo prazer da sensação de posse. Mesmo o exemplar não lido é, de certa forma, conquistado por seu dono. Ou, como diria Bonnet, "também foram ‘lidos’ de um certo modo, estão classificados em algum lugar do meu espírito como na minha biblioteca.” Apesar de prazeroso, o acúmulo de livros não lidos é uma atividade que requer cuidado. Fantasmas na biblioteca reproduz o aviso de Sêneca: "Que me importam esses inumeráveis livros e essas bibliotecas, cujos proprietários, durante toda a vida, mal leram as etiquetas?” Por mais que a compra compulsiva de livros seja bem-vista, a meta final deve ser sempre a leitura, ainda que num futuro distante.

2) O flerte e a culpa

A falta de espaço ou de dinheiro podem frear a expansão de uma biblioteca pessoal, mas o maior inimigo do acúmulo de livros é a culpa. Quando a pilha de exemplares comprados e não lidos cresce, até o bibliômano mais perdulário começa a se sentir culpado por seus flertes. Felizmente, os ímpetos de racionalidade não costumam resistir a uma visita à livraria, ou mesmo a alguns minutos diante do computador. Faço uma confissão, certo de que meu caso não é o único. Num dia 31 de dezembro, ao perceber que a quantidade de livros não lidos em meu leitor digital e em minha estante seria suficiente para algumas décadas de leitura, prometi não comprar livros durante o ano seguinte. A promessa foi quebrada antes do fim de janeiro, quando o site de uma livraria anunciou uma promoção imperdível – a primeira de muitas naquele ano. Descobri que a resistência a comprar novos livros só aumenta o prazer de ceder à tentação. Os motivos que fazem um leitor se deixar vencer pelo flerte são os mais variados. Bonnet revela que, em sua juventude, comprou um exemplar de Lolita, de Nabokov, só porque gostou da capa, e se rendeu a O lobo da estepe, de Herman Hesse, por causa do título misterioso, mesmo sem conhecer o autor. Embora alguns livros sejam comprados depois de longos namoros, a maioria chega às estantes graças a essas paixões à primeira vista que, após a compra, se transformam em relacionamentos duradouros.

3) O apego inexplicável

Se compramos livros seguindo critérios quase irracionais, cedo ou tarde nos tornamos vítimas de nossos instintos e maculamos nossas coleções, grandes ou pequenas, com obras de baixa qualidade. Isso nos força a escolher entre o prazer de possuir um livro, mesmo ruim, e a vontade racional de passá-lo adiante e abrir espaço para outro volume, mais adequado às nossas expectativas. Nessas batalhas contra a razão, o desejo de preservação do acervo raramente é derrotado. “A escolha do que se deve guardar ou rejeitar requer uma energia que eu sempre economizei”, diz Bonnet. "Quem sabe se, no futuro, não terei necessidade de uma obra que, na hora, achei medíocre?"

4) O bibliotecário em cada um de nós

Os entusiastas do livro digital têm, aqui, um trabalho (e um passatempo) a menos do que os admiradores dos livros de papel. Em leitores digitais como o Kindle ou o Kobo, bastam alguns cliques para organizar toda sua coleção por título, data de leitura ou nome do autor. Os átomos são muito mais indóceis que os bits. Domar uma estante de pequeno ou médio porte exige no mínimo uma tarde de trabalho. Organizar uma coleção de milhares de volumes é uma tarefa para a vida inteira. Além do esforço braçal necessário para remover os livros das prateleiras e reorganizá-los, há o esforço intelectual de escolher entre vários critérios de organização. Ao contrário dos arquivos digitais, os livros de papel aceitam uma infinidade de classificações. Bonnet reproduz uma lista elaborada pelo romancista francês Georges Perec. Segundo ele, é possível organizar os livros por ordem alfabética (de título ou nome do autor), por continentes ou países, por cores, por data de aquisição, por data de publicação, por formatos, por gêneros, por grandes períodos literários, por línguas, por prioridades de leitura, por encadernações e por séries. Em seguida, Bonnet expõe as falhas de cada um desses critérios e volta a citar Perec: "Nenhuma dessas classificações é satisfatória em si mesma. Toda biblioteca se ordena a partir de uma combinação dessas classificações."

5) A força dos hábitos

Os acumuladores de livros podem ser divididos em dois grupos. Alguns tratam seus exemplares com reverência. Outros encaram os livros como meros objetos de estudo e trabalho. Os membros do primeiro grupo tentam manter ao máximo o estado de conservação das obras. Ao abrir um volume da coleção de um deles (com a devida autorização do dono, acompanhada de instruções de manuseio), é difícil notar traços de contato com mãos humanas. Os elementos do segundo grupo são facilmente reconhecidos por suas estantes cheias de exemplares castigados pelo uso e repletos de anotações. Bonnet se enquadra no segundo grupo. "Escrevo em meus livros, a lápis, com caneta hidrográfica ou esferográfica. Aliás, não consigo ler sem alguma coisa à mão." Os conservacionistas podem se gabar do fato de que suas coleções sobreviverão por mais tempo. Os anotadores compulsivos têm o privilégio de reler suas anotações anos depois de feitas, como recados ao leitor futuro numa máquina do tempo.

6) Memórias e fantasias
Embora a presença opressora dos livros comprados e não lidos iniba esse comportamento, é inevitável reler alguns exemplares que insistem em sair da estante para a cabeceira. Ao abrir um livro já lido, revisitamos não apenas as palavras do autor, mas também nosso próprio passado. O estado de espírito que tínhamos na primeira leitura ressurge na leitura seguinte, mesmo depois de muitos anos. Reler é discutir consigo mesmo, e muitas vezes discordar de julgamentos do passado. Bonnet cita o exemplo do escritor modernista Paul Morand, cujo estilo o encantara aos 20 anos, mas tornou-se insuportável numa releitura depois dos 60. Quem acumula enormes pilhas de livros não lidos depara com outro prazer da memória, mais melancólico: o de se emocionar pela primeira vez com um exemplar comprado há muitos anos e imaginar o que teria sido diferente em sua vida se o tivesse lido na primeira oportunidade. Quanto maior a lista de obras a ler, mais numerosas são as vidas paralelas. Se suas leituras não têm qualquer influência sobre suas decisões e seu modo de viver, você está lendo os livros errados.

7) O dom de esquecer
Por maiores que sejam as estantes, ou o espaço nos discos rígidos, a tarefa de processar o conteúdo (ou ao menos as capas e títulos) de uma coleção de livros cabe, em última instância, à mente do leitor – um instrumento fascinante, mas pouquíssimo confiável. Com o passar dos anos e o acúmulo dos livros nas prateleiras e na memória, obras que lemos com atenção podem ser quase totalmente esquecidas. Bonnet cita Pierre Bayard, autor de Como falar dos livros que não lemos, para explicar essa fraqueza. “É, antes de tudo, difícil saber com precisão se lemos ou não um livro, pois a leitura é o lugar do evanescente", diz Bayard. Ao conversar com outro leitor sobre um livro que já lemos, não é raro perceber que deixamos de notar aspectos cruciais da obra, ou que apagamos trechos inteiros da memória. Se escolhermos o texto certo e esperarmos tempo o bastante para que a memória comece a nos trair, cada releitura da mesma obra pode ser uma experiência totalmente nova. Mesmo quem vive entre quarenta mil livros é capaz de perder-se num só.
Danilo Venticinque (Texto publicado em 2013)

quinta-feira, abril 23

Leitora em viagem

Salve Jorge e o livro

O Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor é uma oportunidade para reconhecer o poder dos livros na mudança das nossas vidas para melhor e para apoiar os livros e aqueles que os produzem.

Como símbolos globais de progresso social, os livros – aprendizagem e leitura – tornaram-se alvos para aqueles que denigrem a cultura e a educação, que rejeitam o diálogo e a tolerância. Nos últimos meses, temos visto ataques contra crianças nas escolas e a queima pública de livros. Neste contexto, o nosso dever é claro – devemos redobrar os esforços para promover o livro, a caneta, o computador, juntamente com todas as formas de leitura e de escrita, de modo a combater o analfabetismo e a pobreza, a construir sociedades sustentáveis, e a fortalecer as bases da paz.

A UNESCO tem liderado a luta contra o analfabetismo, a ser incluída como elemento fundamental nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2015. A alfabetização é a porta para o conhecimento, essencial para a auto-estima e o empoderamento individuais. Os livros, em todas as formas, desempenham um papel essencial neste aspecto. Com 175 milhões de adolescentes no mundo – a maioria meninas e mulheres jovens – incapazes de ler uma única frase, a UNESCO está empenhada no domínio das tecnologias de informação e comunicação, em especial as tecnologias móveis, de forma a apoiar a alfabetização e a alcançar os excluídos com aprendizagem de qualidade.

Os livros são plataformas de valor incalculável para a liberdade de expressão e o livre fluxo de informação – estes são essenciais para todas as sociedades actuais. O futuro do livro como objeto cultural é inseparável do papel da cultura na promoção de vias mais inclusivas e sustentáveis ​​para o desenvolvimento. Através da suaConvenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,que celebra o seu 10º aniversário este ano, a UNESCO pretende promover a leitura entre os jovens e os grupos marginalizados. Estamos a trabalhar com a International Publishers Association, a International Booksellers’ Federation e a International Federation of Library Associations para apoiar as carreiras profissionais nas editoras, livrarias, bibliotecas e escolas.

Este é o espírito norteador de Incheon, na Coreia do Sul, que foi designada Capital Mundial do Livro 2015, em reconhecimento do seu programa para promover a leitura entre as pessoas e as camadas mais desfavorecidas da população. Esta designação entra em vigor no Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor e será comemorada com os participantes do ano anterior, Port Harcourt, na Nigéria.

Com Incheon e toda a comunidade internacional, vamos unir-nos para comemorar os livros como a personificação da criatividade, o desejo de compartilhar ideias e conhecimentos, para inspirar a compreensão, o diálogo e a tolerância. Esta é a mensagem da UNESCO sobre o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor.

Irina Bokova, Diretora-Geral da Unesco, por ocasião do Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor

Todos, sagrados

La biblioteca ilumina el conocimiento (autor desconocido)

Mesmo os maus livros são livros, e por isso são sagrados
 Günter Grass