quinta-feira, dezembro 10

Cossaco ou naïf: o que é preciso para ser editor?

“Todo editor é um burguês, já dizia Bourdieu”, declarou o editor francês Gilles Colleu em sua participação na última Primavera dos Livros, que aconteceu no último final de semana no Rio de Janeiro. A frase me bateu em um momento de reflexão pessoal/profissional. Eu andava me questionando o que é ser editor nestes dias sinistros, em termos financeiros e culturais, quando livrarias e editoras vêm fechando as portas. Era uma data redonda, propícia para parar e pensar no caminho até aqui. Quinze anos da Primavera dos Livros Literária. O que éramos há 15 anos? O que queríamos ser?

Na virada do milênio eu estava entre os que conspiravam uma “Liga” de editoras “Independentes”. O que vinha a ser “independente” não estava claro, mas tinha alguma coisa a ver com não estar comprometido com grandes grupos econômicos e, justamente por isso, não conseguir um lugar no mercado. Outra consequência de não estar ligada a grupos econômicos era o permanente aperto no caixa das editoras da Libre, a exceção de uma: Cosac & Naify.

A Cosac foi fundada no mesmo ano em que abrimos a Casa da Palavra, mas dizer que andaram em paralelo é tripudiar da geometria. A Casa da Palavra começou com capital zero, a Cosac Naify tinha pontos-de-equilíbrio (a quantidade de exemplares vendidos que paga os custos) inexpugnáveis. A discrepância não impediu alguns pontos de encontro entre as editoras, incluindo a coedição de Os miseráveis. Nestes quase 20 anos as editoras cresceram e apareceram. Hoje a Casa da Palavra está incorporada no grupo LeYa, e a Cosac Naify acaba de anunciar seu encerramento.

Foi também na virada do milênio que André Schiffrin escreveu O negócio dos livros, publicado mais tarde pela Casa da Palavra (um tanto premonitoriamente). O manifesto alertava para o fim das Editoras “de editor” solapada pelos interesses pecuniários dos grandes grupos de mídia. Incidentalmente, a parte (Michael) Naify da Cosac está ligada a um gigantesco grupo de mídia, mas a empresa sempre foi uma editora “de editor”, nominalmente: Charles Cosac. Foi ele — em concerto com Augusto Massi, Cassiano Elek Machado, Florence Müller, Bernardo Ajzemberg, entre tanta gente brilhante — o esteio da editora que leva seu nome, desdenhando solenemente de toda aquela pressão pelo resultado econômico de que falava Schiffrin. Em uma entrevista impromptu ele culpou a alta do dólar, custos gráficos, prazos de livrarias, baixas vendas. Puro despiste. Não foi o súbito encontro da/do Cosac com o imperativo econômico que fez a editora fechar.

“Ao meu ver, uma editora deve existir exclusivamente para alimentar um projeto cultural e quando eu senti o projeto Cosac Naify ameaçado, eu julguei que seria o momento correto para cessarmos nossas atividades. Como o fiz. Dessa maneira, eu perpetuo um sonho belíssimo do qual tantos participaram e ajudaram a construir.” A carta aos leitores esclarece: o sonho continua, o que acabou foi a realidade.

Charles Cosac desanca Bourdieu: é o editor anti-burguês. Da burguesia seria, se tanto, o épatteur. Sergio Augusto o equipara ao esteta Franco Maria Ricci, que imprime sobre folhas feitas à mão. Eu prefiro compará-lo a outro editor italiano: Giacommo Feltrinelli. Em comum: são muito ricos; mantiveram-se incólumes contra a corrente; e editavam com a vida. Feltrinelli, por sinal, deu a vida pelas ideias, literalmente: morreu em uma ação terrorista — onde era ele o terrorista. Ser milionário e comunista eram dois lados de sua radicalidade.

Nestes tempos de vacas esquálidas e desprezo oficial à cultura e à educação, algumas editoras e editores se reinventam para sobreviver, ou mais simplesmente “cessam as atividades”. As listas de mais vendidos confirmam o apocalipse de Schiffrin: aglomeradas, são cada vez menos editoras, publicando sobre cada vez menos assuntos (e vendendo menos livros). A internet, que prometia dar voz à diversidade, acabou ironicamente ocupando os primeiros lugares, com youtubers que converteram um pequeno porcentual de seus milhões de seguidores em leitores.

“Um editor independente é aquele que concebe sua política editorial com toda a liberdade, de maneira autônoma e soberana: ele não é um porta-voz da expressão de um partido político, de um grupo de comunicação ou de uma empresa” afirma o manifesto dos editores independentes, subscrito pela Libre. Até aí é muito bonito, e fácil. Mas o texto prossegue: “a composição de capital de uma editora e a identidade de seus acionistas informam sobre a independência do editor”. Como ser independente quando sequer se tem um capital composto? Como alguém pode se dar o direito de ser burguês ou artista com contas a pagar? A Cosac & Naify tinha capital (uns R$ 140 milhões, parece), porém o seu “resultado do exercício” era um sonho. O mesmo “sonho” que Charles Cosac quer perpetuar ao fechar sua empresa, e que mantém abertas as editoras da Libre (mesmo porque a maioria não tem capital).

Saí daquele “debate sobre a bibliodiversidade” um tanto atarantado. Para combinar, era noite, chovia…

Mas eu voltei dois dias depois, e o clima era bem melhor. Literal e figurativamente: fazia um sol gentil, e nas alamedas da Primavera Literária me empanturrei de livros. Revi editoras de quem fui companheiro na primeira Primavera, e descobri nova gente, dando nova forma ao sonho de que falava Charles Cosac.

Acho que está aí o que nos faz editores. A certeza de seguir, por cima da lógica financeira, por cima da penúria cultural vigente. Enfrentar e seguir em frente. Com o ímpeto de um cossaco, com a fé de um naïf.

Julio Silveira

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