domingo, novembro 15

Carta do sertanejo

Sr. Redator:

Uma das minhas distrações da mocidade, depois de um cavalo bom de gado, era a leitura dos livros do meu tempo.

À força de ler e reler muitas vezes, para mim e para outros, as proezas dos Doze Pares de França, cheguei a aprendê-las de memória; e tanto me embebi nas façanhas de Roldão e Oliveiros que, quando mal cuidava, me via em sonhos armado de durindana a cutilar mouros e hereges no campo dos infiéis.

A história, porém, ouvida com mais devoção, não era a do Imperador Carlos Magno, mas sim a de João de Calais, homem corajoso e de boas ações que pagou em terra estranha as dívidas de um morto, para que pudesse ter sepultura, e libertou do poder dos piratas princesas destinadas ao cativeiro.

Sempre que lia essa curta história, no alpendre da nossa casa sertaneja e a pedido das pessoas que ali se ajuntavam, em dia de vaquejada, vi muito semblante de homem se desmudar e dos olhos das donas que já tinham sofrido penas do coração borbotarem lágrimas aflitas.

Nesta visita ao antigo torrão onde fui criado, ainda tenho podido encontrar, graças a Deus, alguns devotos das minhas leituras, todos lembrados das histórias soletradas e nelas acreditando como eu acreditava, felicidade que perdi e não os abandonou na constância de anos vividos na mesma terra do nascimento. Além daqueles, li muitos outros livros. Romances compridos e mais cheios de voltas e contravoltas do que bom-nome catingueiro.

Poesias que achava, às vezes, tão bonitas como os desafios de Manoel do Riachão e João Birro do Japi, cantadores que nas principais festas do ano nunca deixavam de se topetar por esses sertões afora. Infelizmente, o vigário da freguesia, que primeiro me ensinou a carta do A B C e mais tarde desistiu de meter-me na cabeça os princípios do latim, não esmoreceria em ativar o cuidado do meu avô de criação, a fim de impedir-me que me envenenasse com a leitura de obras amaldiçoadas.

Fossem ou não fossem excomungadas, não escaparam todavia à minha curiosidade Rocambole e O Judeu Errante, livros que me emprestou o boticário, herege famoso, mas falecido anos depois com todo os sacramentos da igreja e responsos do mundo beato, em louvor do convertido.

Duas coisas deram muito que falar a respeito desse homem bom: a heresia já referida e as histórias esquisitas, que costumava contar a propósito de casos ouvidos dos conversadores de todas as tardes, na porta de sua botica. O que ele contava por despique, e parecia história de onça, era quase sempre uma maneira branda de emendar o exagero do contador, sobretudo quando se tratava de caçada e prosa de caçador.

Às vezes não compreendiam o gracejo e o mentiroso era ele; mas se o entendiam, havia bate-boca e até malquerença, felizmente menos duradoura do que flor de muçambê.

De uma feita, certo caçador, estando ele presente, falou na façanha de um seu cadelo numa caçada de raposa.

A potoca foi tão grande que os do adjunto não se riram dela. Foi então que o boticário, em desforra à afronta feita a todos pelo mal-ensinado caçador, contou a seguinte anedota de um cachorro veadeiro.

O bicho, dizia ele, chamava-se Dourado. Era de bom tamanho, pesunho e cotó. No tempo em que o melhor cachorro não valia um bodete do dízimo, ele, boticário honrado, eleitor e juiz de fato, o comprara a seu dono por cem mil réis. A primeira vez que o soltou no piso de um veado, foi na aba da Serra do Cabugi, numa sexta-feira de agosto, o pôr-do-sol. Dourado saiu num galopinho de três pés, fareja aqui, fareja acolá, a princípio calado, o focinho, ora rasteiro com o chão, se as veredas e o carrasco consentiam, ora levantado para sorver no ar a direção da caça e, de atalho em atalho, encontrar de novo a batida. De repente, parou; farejou com a cabeça mais alta, deu um ganido impaciente e partiu como uma bala. Ainda lhe ouvi o latido três ou quatro vezes e depois fechou-se o mundo para mim, que nunca mais o alcancei. Cheguei em casa já com escuro, triste por ter perdido Dourado; e mais triste do que eu ficou a mulher para quem um cachorro de cem mil réis valia quase um chiqueiro de cabras. A noite passou-se sem novas nem mandadas do cadelo, e da mesma forma o dia seguinte, até que à primeira cantada do galo, de domingo para segunda-feira, acordei com as arranhaduras de um bicho na porta da frente e a voz alvoroçada da Felismina a bradar: corre, marido, que é Dourado. Levantei-me num sufragante, e, mal abria a porta, o cachorro esbaforido, a língua de fora e a baba a escorrer em fios dos cantos da boca, e começou a festejar-me ganindo de contentamento, as pernas dianteiras alçadas até onde me podiam alcançar, mordendo-me de vez em quando, com brandura, a perna da ceroula, num movimento de quem queria mostrar-me, no terreiro, alguma coisa que houvesse trazido.

- Já sabemos, gritaram os ouvintes, Dourado trouxe o bicho esquartejado.

- Estão vocês muito mal-enganados, respondeu o boticário; como o peso do veado morto fosse grande, o que ele trouxe foi o couro espichado.

Desta vez riram-se todos e a conversa continuou até perto do pôr-da-lua, quando cada qual foi se despedindo com sobrosso de perder o resto de claridade que lhes alumiasse o caminho de casa.

Naquele tempo, tão recuado na distância dos anos, se a luz da noite não vinha da lua e das estrelas, as cidades, vilas e povoados sertanejos ficavam na escuridão, esperando que Deus quisesse acender essas lamparinas do céu. Hoje, quase por toda parte, é a mão do homem que acende a luz com o simples manejo de uma tarraxa na parede.

Essa é uma das invenções que, alegrando as ruas, alegrou também a morada sertaneja, muito embora tivesse vindo favorecer o estabelecimento de casas de jogo, onde velhos e moços vão perder, todas as noites, o fruo do trabalho honrado.

Na minha caturrice de apego a todos os costumes do meu sertão antigo, tem-me acontecido ainda agora sentir saudade, no meio de tanta claridade, das casas mal-alumiadas de outros tempos em que essa quase escuridão de boca da noite fazia mais aconchegadas as pessoas da família, e o silêncio noturno tornava cada habitação um lugar de descanso espiritual e de reparação das forças gastas na labuta de todo dia.

Perdoe, Sr. Redator, esse desabafo de um sertanejo que, na peregrinação destes dias, não tem feito senão ressuscitar o sertão da mocidade, tão manso e tão bom que chego a me lembrar das fogueiras que já não se acendem e do aboio que ainda não ouvi, como quem se lembra da felicidade perdida e nunca mais encontrada.

Parelhas, fevereiro de 1926

Eloy de Castro, Cartas de um sertanejo

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