quinta-feira, novembro 5

Breve romance de sonho

Era no tempo em que ainda existiam as lojas Mappin, isto é, não faz muito. Marco, um estudante de filosofia, estava recebendo a visita da mãe, que viera de longe para vê-lo. Nesse dia levou-a ao Mappin para que ela comprasse uma blusa. Já começava a fazer frio. Enquanto a mãe percorria a seção de roupa feminina, deslizando em câmera lenta de ilha em ilha, com a firme intenção de percorrer todo o arquipélago, Marco foi sentar-se numa cadeira e abriu um livro.

Na cadeira vizinha estava sentada uma moça que também lia um livro. Observou-a de soslaio. Tinha o rosto ovalado, os olhos eram verdes e os cabelos escuros desciam até os ombros. O tecido da blusinha fina colava-se ao tronco frágil e delicado que no entanto descrevia um harmonioso percurso até os quadris fortes e destes para a solidez das coxas ocultas pela saia estampada. Marco levou um pequeno susto quando viu a capa do livro que ela segurava: era o mesmo que ele lia, isto é, a maravilhosa novela de Arthur Schnitzler, "Breve Romance de Sonho". Teria ela visto o filme de Stanley Kubrick?

A quem ela espera?, perguntou-se. Logo teve a resposta. Um homem se aproximou, entregou-lhe qualquer coisa em silêncio (um silêncio pesado, distante) e afastou-se de novo em direção aos provadores. Casada, concluiu Marco. Seja como for, em que página do livro ela se encontra? Esticou os olhos e descobriu que na página 85. Não teve dúvida de que ela terminaria de lê-lo aquela noite mesmo, recostada num travesseirão, enquanto o marido, bem, o marido se ocupava de outra coisa num outro aposento. Desejava que assim fosse e envergonhou-se disso.

Se está na página 85, refletiu Marco, então seus olhos já percorreram aquele trecho que os dele já haviam percorrido com uma emoção agravada pela imaginação:

— "Ele hesitou um instante; depois, fez como ela queria, deitando-se a seu lado. Cuidou, porém, para não tocá-la. (...) Ficaram ambos em silêncio, deitados de olhos abertos, sentindo a proximidade e a distância um do outro".

Teria ela sentido o mesmo que ele? Pareceram absortos na leitura durante quinze minutos. Mas demoravam muito a passar de uma página a outra. Na verdade, conjeturou Marco, observavam-se sem se olharem. Teve certeza disso quando ela repentinamente virou-se para ele e, deixando claro que havia notado a coincidência dos livros, sorriu-lhe. Mas não disse nada e fingiu voltar à leitura. Ao fim de dez minutos o marido retomou e chamou-a à parte. Ela deixou o livro sobre a cadeira e acompanhou-o. Parecia irritado e insatisfeito com alguma coisa, talvez com as camisas que provava, nenhuma delas boa o suficiente para ele. Quando o marido se afastou, ela levantou ostensivamente os olhos para o teto e suspirou. É coisa antiga, concluiu Marco. E viu-a acomodar-se outra vez na cadeira, com uma graça de gazela, e reabrir o livro. Pobrezinha, pensou.

Nesse ínterim a mãe de Marco reapareceu e chamou-o. Havia escolhido uma blusa que não lhe caía bem, e Marco teve trabalho para convencê-la disso:

— Está grande nos ombros, mãe.

— Mas eu sou apenas uma viúva, disse a mãe.

— Por isso mesmo, brincou Marco. Quando voltou para a sua cadeira, a moça estava de pé mirando-se num espelho. Tinha ouvido a conversa e sorria. Juntou os cabelos para trás e passou-lhes uma presilha. Estava agora com o pescoço à mostra e Marco pensou que era para ele. Teve então a idéia maluca de passar diante do espelho e encará-la de frente, quase não acreditando no que fazia. Ela notou o estratagema e ao vê-lo passar pareceu acompanhá-lo com os olhos interessados. Marco sentiu o rosto queimar de excitação. Vagaram então pelo arquipélago, em linha paralela ou de costas um para o outro, como estudando o terreno. Voltaram quase juntos para as cadeiras e tomaram a abrir os respectivos livros.

Pensou em lhe dirigir a palavra nestes termos: "O final é surpreendente". "Não me conte", ela diria. E ele: "Acha que a fantasia de Frigolin é real ou imaginária?". Mas não chegou a dizer nada. O marido estava outra vez de volta e passou por ela como um cometa, convocando-a com um movimento de cabeça. Ela levantou-se e seguiu-o. Marco viu-os se afastarem em direção à saída e previu que, chegando à porta, ela voltaria a cabeça e sorriria de novo para ele. Mas não o fez. Perdeu-se na multidão do shopping.

Tarde da noite, na pensão onde tinha um quarto, enquanto via a mãe reforçar amorosamente um dos botões da blusa nova, Marco notou que seu exemplar do Schnitzler tinha uma página dobrada ao meio. O que era estranho, pois não costumava dobrar páginas de livros. Observou melhor e constatou, aterrado, que aquele exemplar não era o seu. Tinha havido uma troca. Tanto haviam se levantado e sentado que tinha havido uma troca. Foi quando, entre a capa e a folha de rosto, encontrou um diminuto cartão de visitas. Leu: Alicia Ferreira de Oliveira Paniagua. E embaixo, acrescentado à mão: alicia@butterfly.com.br. E mais abaixo um número de telefone.

Eustáquio Gomes (1952-2014)

Nenhum comentário:

Postar um comentário