segunda-feira, novembro 9

Bibliotecas imaginárias

Alguns escritores deram forma literária ao antigo sonho da construção de uma biblioteca que pudesse reunir todos os livros escritos em todos os tempos, em diversas línguas, em todos os lugares e por diversos autores. Confundindo-se com o próprio universo ou, pelo menos, remetendo ao universo particular de alguma personagem, essas bibliotecas imaginárias são na ficção literária manifestações artísticas de um projeto que historicamente parecia impossível.

Essa identidade entre o livro ou a biblioteca e o próprio universo, encontrada em alguns casos da literatura universal, permite uma breve consideração sobre a ambição de se reunir todo o saber e todos os textos escritos em circunstâncias históricas diferentes. Primeiramente, tem-se um longo período histórico anterior à chamada revolução tecnológica ou informática, no qual o projeto ou desejo de construção de uma biblioteca universal não passa de um sonho inviável. Atualmente, tem-se um cenário no qual as infra-estruturas informáticas possibilitam iniciativas relacionadas com um processo de construção de bibliotecas virtuais e de caráter universal.

Vejamos, então, alguns desses exemplos de bibliotecas imaginárias para, em seguida, retomarmos o exame das possibilidades de realização das bibliotecas universais no contexto atual das mediações tecnológicas e informáticas no tratamento da informação e dos textos.

Uma primeira menção não se refere propriamente ao sonho de reunir todos os livros em uma biblioteca, mas, antes, diz respeito à identidade de uma biblioteca com o universo e imaginário de certa personagem. É o caso da biblioteca imaginária encontrada na obra de Miguel de Cervantes, pertencente ao personagem Alonso Quijano. Na história, a biblioteca, que possui uma grande quantidade de livros de cavalaria, confunde-se de certa forma com o universo da personagem, pois a loucura de Dom Quixote é atribuída a própria biblioteca, que acaba sendo condenada e destruída pelo fogo.

Também aproximando o livro e a biblioteca do próprio universo humano ou pessoal, tem-se no conto Mundo de papel, de Pirandello, uma referência à estreita identidade entre os textos e o universo. Na história, Balicci, um professor que fica cego de tanto ler, horroriza-se quando um dia a moça que lia os livros para ele demonstra que percebe no texto somente aquilo que tem correspondência com a realidade ou o mundo exterior. O professor despede sua leitora porque ela não percebia que o mundo do livro, ou do papel, era de fato o mundo que importa. Como observa Chartier, acerca desse episódio encontrado em Pirandello, fica evidente que o mundo de papel de Balicci, como o de Dom Quixote, tornara-se o próprio universo. Cego, o professor encontra seu único conforto, ou sua única certeza, no fato de que, quando folheia seus livros, que se tornaram ilegíveis, seus textos retornam na sua memória e, com eles, o universo como ele é - ou deve ser.

Outra biblioteca imaginária é encontrada no romance "O Nome da Rosa", de Umberto Eco. Nele, há uma referência a uma biblioteca que contém livros perdidos, com passagens secretas e um jogo de espelhos que produzem o efeito de multiplicar as estantes e os livros até o infinito. O aspecto relacionado com a ilusão de uma biblioteca interminável deve ser destacado nesse caso.

Mas a biblioteca imaginária que mais se destaca nos textos literários parece ser mesmo a de Borges. O escritor argentino apresenta-nos uma “biblioteca imaginária” por meio da descrição de uma biblioteca total e interminável, que pode ser tomada também como o Universo.

Em Jorge Luis Borges, temos uma biblioteca cujas “prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos ... tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas”, revelando também “a natureza disforme e caótica de quase todos os livros”. Em uma biblioteca que se confunde com o próprio universo, a busca do “livro” que contém todos os outros é neste conto a perseguição da felicidade e da realização plenas. O grande sonho do narrador nessa biblioteca multiforme é a fantástica tarefa de se achar o “livro” que contém todos os outros. Um livro com combinações infinitas, um hipertexto na forma de um livro que é “a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais”.

No seu comentário a respeito do conto, Borges apud Monegal remete sua ficção literária ao fato de que Kurt Lasswitz, nos fins do século XIX, jogou com a angustiante fantasia de uma biblioteca universal, que registrasse todas as variações dos vinte e tantos símbolos ortográficos, ou seja, tudo quanto é dado expressar, em todas as línguas. (...) O livro não é um ente incomunicado: é uma relação, é um eixo de inumeráveis relações.

Para o escritor argentino, a biblioteca que contém todos os livros imagináveis deve conter também o livro que contém todos os textos, em outras palavras, todas as possibilidades de combinação das letras: “Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total”

Cabe aqui, nessa alusão de Borges ao livro por excelência, lembrar o “livro imaginário” de Mallarmé, que de algum modo aproxima-se do livro completo que se procura na Biblioteca de Babel. Mallarmé concebe um livro que pretende ser integral, múltiplo e que contenha potencialmente todos os livros possíveis, uma espécie de “gerador de textos, impulsionado por um movimento próprio, no qual palavras e frases pudessem emergir, aglutinar-se, combinar-se em arranjos precisos para depois se desfazer, atomizar-se em busca de novas combinações” (Machado).

No livro imaginário de Mallarmé, a própria concepção de livro é colocada à prova. O texto não se limita às páginas ou ao formato do livro ocidental. Nesse sentido, é pertinente a observação de Hyppolite que, ao falar das “ diversas possibilidades de ler o texto” no "Livre de Mallarmé", declara ser possível encontrar nele “um número que ultrapasse o milhão na organização de apenas 10 páginas”.
Se por um lado as bibliotecas imaginárias ou o Livre de Mallarmé pode ser localizado no contexto da ficção literária ou dos sonhos inviáveis à época de suas concepções, atualmente esses elementos da imaginação literária ou da utopia de escritores inovadores ganham novos contornos.

Com as possibilidades abertas pelas novas tecnologias, tanto a biblioteca imaginária de Borges quanto o livro potencial de Mallarmé deixam de ser especulações ou sonhos que se enquadram apenas no universo ficcional para tornarem-se projetos viáveis.

Luis Cláudio Dallier Saldanha

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