quinta-feira, junho 25

Os pés pelas mãos

Só que eu, e não é para contrariar, sou um muito mau (vamos, nada de exageros: um medíocre) trabalhador da escrita. Não tenho paciência. Não aprendi técnica literária. Não percebo puto de semiologia, nossa senhora. Chateei-me sempre de ler os professores de linguística e o como-deve-ser dos gramáticos. Não consigo levar um texto direito do princípio ao fim. Distraio-me, sabem? Brinco e falo a sério, meto os pés pelas mãos, já não sei onde vou, que burrices deixei atrás, que asneiras direi daqui a bocado. Acresce que não me importo nada com tais defeitos, se trejeitos ou efeitos do risco. Não sei, nesta instabilidade, se sou um anarquista ou um desesperado ou ambas as coisas ou mais ainda, como por exemplo um homem dividido por tantas multiplicações. À falta de melhor, direi que sou um poeta – embora o texto o não comprove devidamente. Sou um poeta que não sabe escrever mas escreve o seu não saber. (O leitor não tem nada com isso e o compositor, esse, compõe. Compõe isto, ó sorte malvada! Vai daqui um abraço para o senhor compositor. Amigo que estás aí com os dedos nas teclas, cautela com as gralhas, não te enganes. Para enganos, basta este.) Aqui para nós, estou-me nas tintas para a literatura, ou melhor, para as belas-letras. Artifício por artifício, prefiro o meu. Sempre é mais limpo. Digamos que tem os truques mais à vista. Até escrevo na primeira pessoa do singular, eu que sou uma pessoa do plural! Que fazer? Arrumar a bic, ir lá fora ver se chove? Isso faço eu quando não suporto mais o ridículo da situação, tal como ouço a rádio e almoço na Dona Felicidade e discuto política com os amigos e desço a pé a Avenida da Liberdade e atravesso o rio e vou ao cinema e subo no elevador a Calçada da Glória e paro nos Restauradores a ver as pessoas muito atarefadas e assim formiga vivo no monstruoso intestino urbano, tão poluídos ele e eu. Cumpro a minha dose de “realidade” e sei não houvera de saber que há um caixão desconhecido que espera por mim (lagarto lagarto lagarto). Mas cumprir a “realidade” é uma coisa e cumprir a escrita outra.

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