terça-feira, abril 14

Um escritor entre duas Alemanhas

Günter Grass (1927-2015)
Berlim
10-02-90
A sensação crescente de constrangimento. De tanto falar nela, a unidade da Alemanha é, como que sob coação, concretizada; já só falta a precipitada materialização dessa realidade.

A pouco e pouco vai-se tornando perigoso falar abertamente contra esta recente insensatez. Se, apesar disso, me mantenho fiel ao meu "não", isso não acontece por obstinação, antes se deve – a par e na companhia de todos os argumentos – a um pressentimento cada vez mais forte do fracasso.

Behlendorf
17-02-90
Comecei hoje a desenhar uma segunda folha de grandes dimensões, em formato vertical, novamente cotos de árvores.

A tranquilidade de Behlendorf permite coligir inquietações dispersas. Continuará depois esta a ser "a minha Alemanha"? Enquanto os checos e os polacos pedem à União Soviética para não retirar as suas tropas demasiado depressa. O tom imperativo usado em Bona deixa já um indício do estilo que de futuro os senhores usarão. É vergonhoso o modo como em Bona mandaram Modrow passear, o mesmo acontecendo com os ministros do grupo da Mesa Redonda, e, claro, também aquilo a que Augstein chama Realpolitik, sendo que o tom por ele usado (na disputa televisiva) em nada se diferencia dos desagradáveis ruídos produzidos pelos senhores Kohl, Waigel, Dregger, Rühe, etc. E os sociais-democratas mantêm-se calados. Se nos próximos dias Oskar Lafontaine não regressar e tomar decisões – se é ou não candidato a chanceler e, se sim, com que política para a questão alemã –, o SPD já não sairá desta mera atitude de reação. Stoltenberg fala de um comando conjunto da Bundeswehr e da Nationale Volksarmee – e ninguém contradiz.

Ontem na televisão: Mazowiecki e Modrow juntos, a melancolia duplicada: humana, conhecedora, capaz de sofrer, quase comovente; por oposição, os nossos retumbantes grão-políticos: é de meter nojo!

Karl-Marx-Stadt
02-03-90
A enorme cabeça de Marx diante do edifício do Conselho Distrital. Deverá ser vendida, para que com o produto dessa venda se possa financiar os custos de voltar ao nome antigo da cidade. O evento no museu com uma pequena refeição (anterior) numa das salas de exposição. O diretor do museu é um antigo membro do SED. Fala acerca disso abertamente, mas não sem algumas inibições. Há pouco tempo, Kohl esteve aqui e, ao estilo dos discursos do Palácio dos Desportos, perguntou às massas: "Querem a unidade da Alemanha? Querem o nosso bem-estar?" Mais vulgar que isto é impossível.

Schwerin
11-03-90
Após escasso sono:
Erguem-se altifalantes pelo país.
Unidade, determinam como mandamento.
Importa agora fazer pouco barulho,
Para que não deixemos
de nos ouvir uns aos outros,
nem o próximo aviso de tempestade.

Behlendorf
21-03-90
De volta ao domingo de eleições em Leipzig. Diante da entrada lateral da Igreja de São Nicolau, numa vedação de obra de chapa ondulada, está colado um letreiro que, com uma orla a azul e escrito a letras azuis, imita uma placa toponímica e indica "Praça dos Intrujados. Saudações dos filhos de outubro. Sim, ainda cá estamos." Sob o título Visto da Praça dos Intrujados, escrever um artigo polémico, dedicado aos filhos de outubro e que, em primeiro lugar, fale da vitória dos partidos do Bloco e do respetivo dote; em segundo lugar, que defina o votante que tem medo (o taxista); em terceiro lugar, que troce da relação de Kohl com o destino e as horas decisivas do destino; em quarto lugar, que defina a peste alemã antiga como arauto de desgraças futuras; em quinto lugar, que deplore a pusilanimida de dos sociais-democratas e que critique a depuração, demasiado rápida, do SED/PDS; em sexto lugar, que uma vez mais descreva os filhos de outubro durante a noite eleitoral; e, em sétimo lugar, que arrisque uma perspetiva.

Berlim para Büchen
21-04-90
O processo de unificação das duas Alemanhas vai-se tornando, por falta de uma ideia norteadora e de capacidade de realização política, uma espécie de teatro provinciano. O meu interesse diminui e já só a raiva é que permite que me envolva nisto.

Colônia para Hamburgo
06-05-90
Regressar à República Federal significa registar a minha crescente distância em relação à "grande" Alemanha. Isto assim não pode ser o meu país. Deste modo, irei decerto ter de (literalmente) despedir-me.

Behlendorf
15-05-90
Se quiser aproveitar este diário como base para um livro que venha a ser publicado, então o livro planeado, Mau Agoiro, teria de desenvolver a sua ação aos arrancos, em estilhaços, em reflexões, no período de tempo compreendido entre novembro de 1989 (Domingo de Finados), portanto, desde a abertura do Muro, e as eleições gerais alemãs; também os textos que surgiram nesta altura, desde o discurso do congresso do SPD, passando pelo "Breve Discurso de um Camarada sem Pátria" e por "Algumas Perspetivas a Partir da Praça dos Intrujados", até um discurso ainda por escrever, poderiam ser aproveitados. A isto poderia juntar-se a versão final de Mau Agoiro – ou a narrativa apareceria simultaneamente como livro.

Leia mais Trecho de "
Em Viagem de uma Alemanha à Outra – Diário 1990" (Transcrito de Revista Sábado)

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