quarta-feira, março 25

Literatura e identidades

Admitindo que a literatura de um país tem algum papel na construção ou reforço da sua identidade — o que significa a sua desnacionalização?
Véronique Didier Laurent
Procurando novidades nas livrarias cariocas encontrei um dos mais recentes títulos de Gonçalo M. Tavares, “Os velhos também querem viver”. O livro foi lançado em Portugal há poucos meses, juntamente com um outro, “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai”. Lançar dois livros em simultâneo, ou com poucas semanas de distância, é uma prática que aterroriza qualquer editor. “Loucura!”, asseguram todos: “Isto prejudica as vendas. Ele não deveria publicar tanto. Vai cansar os leitores e arruinar a própria carreira.” Gonçalo encolhe os ombros e publica os livros, cada qual na sua editora. No mês seguinte publica mais dois, ou mais três, ou mais quatro, e com isto vai multiplicando leitores e colecionando prêmios, um pouco por todo o mundo. Deve ser hoje o escritor de língua portuguesa, vivo, mais premiado e mais traduzido.

Gosto muito do Gonçalo. Ele olha o mundo com a curiosidade, a inteligência e a ingenuidade de uma criança ou de um visitante vindo de uma galáxia remota. Vê, e dá-nos a ver, o que está aqui, às claras, sob a lúcida luz do sol, mas que nós já não enxergamos mais. Toda a literatura dele tem muito a ver com esta engenhosa exposição da evidência. Ao longo dos últimos quinze anos, Gonçalo vem criando um universo muito próprio, que não está assente numa geografia concreta, particular, mas na grande literatura universal. É o caso mais extremo de uma tendência que vem ganhando expressão na literatura portuguesa — uma surpreendente desnacionalização.

Pedro Rosa Mendes, Afonso Cruz, João Tordo, Francisco José Viegas, Miguel Gullander, ou Walter Hugo Mãe, para citar alguns dos nomes mais jovens e mais interessantes da literatura portuguesa, vêm todos eles publicando livros cuja ação acontece para além das fronteiras portuguesas. Em alguns desses livros nem sequer há personagens portuguesas. Leiam, por exemplo, o excelente “Peregrinação de Enmanuel Jhesus”, de Pedro Rosa Mendes, publicado em 2010. O romance, que decorre em Timor Leste, lança um olhar cruel e violento sobre aquele país do extremo oriente, a sua história, os seus habitantes, demonstrando uma profunda intimidade com a mitologia e a cultura popular timorenses. Portugal está quase ausente. É apenas uma lembrança amarga.

Já o mais recente romance de Walter Hugo Mãe, “A Desumanização”, tem a Islândia como cenário e também ele se apropria do imaginário local.

Há anos que esse interesse da literatura portuguesa por outros territórios — ou um vasto desinteresse pelo próprio — me vem intrigando. Numa perspectiva otimista poderíamos ver nessa tendência um sinal de maturidade: os escritores portugueses estão saindo do seu país movidos por uma saudável curiosidade pelo outro e, sobretudo, porque estão em paz consigo próprios.

Em países jovens, como acontece com Angola ou Moçambique, a literatura trabalha de forma obsessiva questões de identidade. Os escritores usam a ficção como forma de afirmação identitária, por um lado, e por outro para melhor compreenderem o país e se compreenderem dentro dele. A literatura serve também para criar ou reforçar mitos nacionais.

Leia mais o artigo de José Eduardo Agualusa

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