sábado, março 28

Cidades mortas

Os grandes livros nunca se esgotam. Cada leitura é um prazer renovado e aspectos novos se impõem à observação do leitor. Digo isso provocado pelo mais recente mergulho nas Cidades Mortas, obras que muitos críticos apontam como a melhor da ficção lobatiana.

Embora seja um livro antigo, com todos os trabalhos datados de antes de 1930 e englobando aqueles que compunham O macaco que se fez homem, sua leitura é cativante e o humor de Monteiro Lobato ainda funciona, provocando o riso e, ao mesmo tempo, piedade por alguns personagens pelas situações em que o autor se compraz em colocá-los. E o estilo é sempre motivo de admiração, ainda que nem ele escape a um ou outro lugar-comum (“como é natural”, razão pela qual”, “astro-rei” etc).

Vários contos retratam a vida das antigas cidades da região cafeeira, enquadrando-se como peças autênticas da “literatura do café”. O “clima” dessas cidadezinhas, naquela época, pode ser sentido pelo leitor sensível. A gente caminha pelas ruas estreitas e tortuosas em que o silêncio reina absoluto. O sol faísca nas pedras do calçamento polido pelos anos e os casarões enormes, repletos de sacadas e janelas, elevam-se de ambos os lados.

Nas pequenas praças as árvores centenárias abrigam os pássaros e, mais além, “a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias” denunciadoras da passagem do Rei Café. Pela tardinha o sino irreverente da igreja faz ouvir sua voz rouca – é “o mais violento perturbador do silêncio”.

Naquele ambiente marasmático, solitário e tristonho, o escritor observa e sonha com os livros que escreverá. Nem de longe imagina que ali está a matéria-prima de su8a melhor obra.

É interessante observar como Monteiro Lobato discute, no correr de seus contos, assuntos alheios à ficção sem prejudica-la. Ou expõe, como se fabulasse, suas idéias e teorias. Tentativas dessa natureza têm comprometido de maneira irreparável a obra de muito ficcionista.

Em “O resto da onça”, por exemplo, a pretexto de um diálogo com a cozinheira Joseja, expõe sua concepção de conto: “Quero conto que conte coisas; conto donde eu saia podendo contar a um amigo o que aconteceu; como o fulano morreu, se a menina se casou, se o mau foi enforcado ou não. Contos, em suma, como os de Maupassant ou Kipling...” Um conceito conservador, conteudístico, exigindo começo, meio e fim, do qual jamais se arredaria.

“Era no Paraíso, um dos seus contos mais conhecidos e que fez grande sucesso, é verdadeira fábula onde o autor, ressentido com a estupidez humana, mostra que o homem não estava nos planos do Criador. Seu aparecimento acidental só veio provocar problemas num mundo até então harmonioso e feliz.

Outros trabalhos abordam questões econômicas, sociológicas, estéticas, agrícolas e outras, sem perde5rerem jamais as características de contos e sem afetarem o sabor da leitura.

Mas é na riqueza da linguagem que Monteiro Lobato se supera, o que, para os leitores de “A Barca de Gleyre”, não constitui surpresa. Está ali, naquelas cartas, a busca incansável do estilo, a procura quase desesperada da precisão vocabular, o exercício contínuo da criatividade. E nesse aspecto “Cidades Mortas” é inesgotável, pelo que registro aqui algumas expressões colhidas ao acaso: sinecuristas acarrapatados ao orçamento (altos funcionários públicos), carrapatos orçamentários (funcionários públicos em geral), orçamentívoros (idem), rolete d’ homem (sujeito retaco), presidencial salame (um presidente gordo), brochuras carunchosas (livros velhos), cultivo de batatas gramaticais (erros de gramática), mulher de pelo crespo no nariz (mulher brava), protuberantes beldroegas do momento (os mandões do presente), cara purgativa (azeda ou amarga), concupiscência retrospectiva (lembrança daqueles momentos), macaco glabro (ele, o rei da criação), burrice ebúrnea (dura como marfim), gelatina insossa (o estilo acadêmico), imortalices quejandas (besteiras de imortal), sornices pacóvias (idem), ideias de pedras (duras e imutáveis), macacalidade (imitação), corisco de minuto (ideia luminosa), torre de ideias (cérebro), macacoas da velhice, taramelagem das más línguas, lote de cavalgaduras, sobrecasacas científicas, apatetamento geral, embezerrado, pensabundo...

Alfabetizar-se era, para ele, ler o Alberto de Oliveira. De onde concluo que, para lobatizar-se, nada melhor que Cidades Mortas.
Enéas Athanázio (Transcrito de Leitores&Livros)

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