quinta-feira, fevereiro 26

Os sacerdotes dos livros

História verdadeira, contada por Tarcísio Trindade à Pública: O homem abre a mala e espalha os livros no chão. É um dos muitos vendedores de alfarrábios e outras velharias que costumam encher a Feira do Rastro de Madrid, Espanha. Estamos num domingo dos anos 60. Tarcísio Trindade veio a Espanha trazer a mãe ao médico. Aproveita para dar uma volta pelo que é considerado a maior feira da ladra em todo o mundo. É um hábito próprio de uma família de antiquários como a sua. O homem espalha vários volumes, uns recentes outros muito velhos, alguns álbuns de banda desenhada. Tarcísio baixa-se, atraído por um calhamaço cuja encadernação lhe parece bastante antiga. Folheia-o. É uma "miscelânea", com quatro obras encadernadas juntas, todas da mesma época. Século XV, quase pode garantir. "Quanto é?" Trás o incunábulo por 500 pesetas.

Já no hotel, folheia a sua preciosidade com a mãe. Não há dúvidas: um dos quatro livros está escrito em português. Intitula-se "Tratado de Confissom". E, também parece não restarem dúvidas, foi impresso em 1489, em Chaves. Ora é sabido que o livro impresso mais antigo escrito em português é o "Vita Christi", de 1495. Ou melhor: era.

Neste momento, Tarcísio só tem uma ideia na cabeça: vender o incunábulo. Quarenta anos mais tarde, a estratégia será a mesma. Na sua livraria, na Rua do Alecrim, em Lisboa, as obras não param muito tempo. É costume os colegas livreiros lá irem esquadrinhar os últimos achados do Tarcício, e levarem alguns para revenda.

Um desses colegas, Tavares de Carvalho, aprendeu com ele a arte dos negócios bibliófilos. Mas adoptou um estilo diferente: gosta de manter os livros em seu poder durante anos. Segundo ele, porque tem cultura suficiente para saber o valor de uma obra e não tem pressa de a vender. Espera até que apareça alguém a oferecer o preço justo. Se não aparecer, não vende. O que também é bom. É prestigiante para o livreiro o saber-se que possui certas obras, tal como é saber-se que protagonizou certas histórias. Peças de valor imenso, como uma primeira edição de "Os Lusíadas" ou da "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, acabam por emprestar o seu valor ao próprio livreiro, enquanto estiverem na sua estante. E usado esse valor ele fará melhores negócios, sem alienar os preciosos volumes.

Se isto é verdade, ser proprietário do "Tratado de Confissom" equivaleria a um autêntico título nobiliárquico. Não obstante, Tavares de Carvalho teria recusado dar os 150 contos que Tarcísio lhe pediu por ele, em 1964.

Leia mais o artigo de Paulo Moura

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