sexta-feira, janeiro 9

Tanta gente

Anita Malfatti
Quando, como hoje, relembro minha infância, imediatamente eles surgem arrastando trapos, descalços uns, mal calçados outros, vozes guturais em alguns, aqui e ali vozes claras, figuras físicas diversas, homens e mulheres, gordos e magros, todos vivendo além de fronteira da razão.

Relembro agora os tipos populares de minha terra, no tempo de menina. O "Diabo atrás da saia" era uma negra alta, magra, de pernas finas. Sempre com um guarda chuva que, de tanto fazer lhe companhia, terminara parecendo com ela, fisicamente. Andava sempre espantando o diabo, que a perseguia colado à sua saia de cor indecisa. Gritava se: "Diabo atrás da saia" e o guarda chuva movimentava se, ela esbravejava, dizia todos os palavrões do mundo e corria atrás dos moleques que éramos todos nós, meninos de meu tempo ricos e pobres, negros e brancos.

Quantos anos teria aquela mulher? Como e onde vivia? Ninguém saberia dize-lo, e só muito mais tarde, já mocinha, comecei a respeitá-la. "Diabo atrás da saia" teria uma estória de mocidade e de vida. Que fora, onde vivera? Foram perguntas que se impuseram mais tarde; nos dias de infância eu me divertia apenas gritando a alcunha da velha, indiferente a seus sofrimentos, aos palavrões. A agitação que provocáramos naquela vida triste.

Cega de um olho, pequenina, andando sempre depressa, muito depressa, (onde iria assim?) passava a "Burra Cega"; depois a "Tainha" monologando e muitas vezes parando para abrir os braços num gesto de desespero.

Tainha!

Burra Cega!

E a correria, enquanto pedras passavam zunindo sobre nossas cabeças. Sabíamos que estávamos procedendo mal; já nos fora dito que com a desgraça das criaturas não se brinca, mas não sentíamos a necessidade da proibição. Todo mundo mexia com aquela gente. Por que iríamos respeitá-la?

Palavrões enchiam a rua, mas eram muito mais fracos do que nossos risos e nossos gritos. Éramos tão felizes que nossa alegria podia controlar e esconder a desgraça dos outros.
Eneida de Villas Boas Costa de Moraes, ou simplesmente Eneida (1904-1971)

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