sábado, janeiro 31

Achados

Ainda não sei o paradeiro de alguns pertences da família, como o prato de porcelana que minha avó materna mantinha na parede da sala de jantar, sobre o aparador. A pintura mostrava dois garotos pobres sentados à sarjeta, saboreando um cacho de uvas. Olhei tantas vezes para eles, que sei de cor as roupas despojadas, os pés descalços, o jeito displicente de se sentarem, a gula e a amizade ali implícitas. Sempre que passo por uma feira de antiguidades ou bazar, procuro revê-los, mesmo que não sejam os meninos da minha infância, mas cópia, já que aquela arte e aquele tema eram bem populares, tempos atrás.

Herdei do pai o gosto por visitar baús e gavetas, à procura de objetos esquecidos e revelações. Lembro que às vezes ele sumia de nossas vistas por horas e minha mãe acabava por descobri-lo em outro cômodo, perdido e encantado entre papeis antigos.

Separando alguns livros para um amigo recente interessado em conhecer minha obra, mergulhei fundo em caixas que quase não abro e prateleiras que servem de depósito do classificado como inútil. Descobri verdadeiras relíquias e imaginei a satisfação de meu pai, se participasse comigo da pesquisa.

Encontrei textos publicados há mais de uma década, de que já não me recordava. Tive diante dos olhos, outra vez, duas cartas preciosas: uma, do uruguaio Eduardo Galeano, honrando-me com a oferta de sua amizade e contando do próximo livro, ilustrado por um brasileiro; outra, de Affonso Romano de Sant’Anna, ainda como diretor da Biblioteca Nacional. Quase um bilhete, mas repleto de frases afetuosas, escritas a mão.

Voltar a tudo isso foi como reencontrar parte de mim esfumaçada pelo tempo. A mesma emoção, porém, anos depois. E a constatação da essência, que nos acompanha e identifica desde o primeiro momento. Continuo fã daqueles dois autores sensíveis e me pareceu que escrevia melhor do que agora, sob a ousadia dos anos verdes.

Também gosto de resgatar mensagens alheias, apreciando o gosto do mistério que as envolve. Certa vez, achei um papelzinho sob um balcão de lanchonete, com dizeres aparentemente sem nexo, em letra de colegial. Guardei-o durante muito tempo, esperando que me inspirasse um conto ou algo assim. Mas o enigma jamais se revelou, muito menos o autor. Então me livrei dele, deixando que o acaso se encarregasse de levá-lo a outros olhares, talvez mais argutos.

Outros bilhetes guardo até hoje, em cadernos de colagens que comecei a colecionar, sem suspeitar que este fora também um hábito de meu avô paterno. São lembranças de amigos que o tempo se incumbiu de afastar, mas que conservo do lado esquerdo do peito. Muitos do tempo de faculdade, outros do início no jornalismo, cada qual com sua pitada de carinho e/ou genialidade.

Sou tão apreciadora de achados, que até mesmo listas de compras ou de tarefas que encontro adormecidas em algum bolso ou bolsa me divertem. Eles me contam o que fui, o que fiz, antes de me tornar o que hoje sou, provando que toda vida é um relato instigante, basta ter olhos de ver. Ou ler.

Madô Martins

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