terça-feira, novembro 18

Ler sem sacrifício



Os Portugueses justificam as horas à frente do televisor dizendo que quando chegam a casa estão cansados e querem é distrair-se. Não havendo coisa mais fácil, preguiçosa e confortável do que ler a grande maioria dos livros que há, é muito estranha esta atitude. A relação conforto/recompensa de quase todos os livros — e não só os que fazem rir, os absolutamente levianos, os mais ou menos envolventes - é sempre mais bon marché do que as alternativas audiovisuais. Os livros podem ler-se distraidamente, saltando, sem prestar atenção, pousando-se quando se quer. Por exemplo, enquanto se vê vagamente televisão.

Por estas e por outras — o plural simpático da ignorância - é que os Portugueses vêem os livros como um “trabalho”. Os da mesa-de-cabeceira e os das férias são iguais àqueles que os intelectuais dizem ler «por razões profissionais». Não gostam de lê-los? Não percebo por quê. É uma delícia ler livros escritos por quem se interessa pelas mesmas coisas que nós. Não é bom conhecer, com um mínimo de trabalho, o que deu tanto trabalho a escrever? O prazer do parasita é dos maiores que o mundo oferece. Por cada livro que escrevemos há cem mil melhores que podemos ler.

No fundo, os Portugueses sacralizam os livros - como dever, trabalho, sabedoria - para não lhes tocar. Quando vêm a minha casa ficam chocados. Perguntam-me se já li os livros todos — sem reparar que a maioria deles são livros de consulta e sem lhes passar pela cabeça que os livros que se podem ler da primeira página são uma minoria. Horrorizam-se com as pilhas de livros e prontificam-se a arranjar estantes. Quando vêem que os livros estão cheios de apontamentos meus, olham para mim como se fosse um vândalo. “Ao menos escrevias com lápis... assim podias apagar...” 
Miguel Esteves Cardoso, in "Explicações de Português" 

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