quarta-feira, novembro 26

Abrindo livros


Entre minhas esquisitices está o fato de minha biblioteca não ter janelas – há apenas uma camada de vidro no alto da parede. Trancado nesta construção, não vejo o que acontece no jardim de casa, se faz sol ou se chove. E corro para este refúgio sempre que a vida me deixa; nenhum lugar no mundo me atrai mais do que este reduto da individualidade. Por que uma biblioteca fechada assim? Porque preciso me desligar da vida doméstica, dos acontecimentos de meu bairro, das exigências da profissão, da solicitação dos amigos. Sou carente de solidão. Mal chego do serviço, onde acabo convivendo com muita gente, procuro logo a biblioteca com suas paredes revestidas de livro. A sensação de estar protegido é boa, o mundo perde sua natureza hostil e sinto que há um centro, que me aceita com meu silêncio.

A biblioteca, no entanto, não tem esta natureza apenas por capricho. Ela representa um conceito que tenho de literatura. O que vou dizer aqui talvez seja algo inadmissível para a maioria das pessoas. Mas o que busco com a literatura é assassinar de uma vez só todos os meus contemporâneos mais imediatos. Quero fazer com que eles desapareçam. Que eu nem me lembre que existe alguém esperando isso ou aquilo de mim. Que minha filha me aguarda para levá-la à casa de uma amiga. Que minha mulher já está com a lista do mercado pronta. Que meu chefe se irritou porque ainda não entreguei algo que me pediu. Que aquele amigo da infância se impacienta porque não fiz um texto sobre seu livro.

De repente, o mundo fica muito invasivo. No sinaleiro, enchem-nos de propagandas, algumas tentadoras, como o de uma boate com belíssimas garotas de programa. Enquanto você almoça, aparecem carros de som ensurdecendo as ruas. À noite, as funcionárias do telemarketing ligam para apresentar mais uma promoção do banco tal ou do cartão de crédito que você não quer. E o celular não só toca em horas impróprias como fica anunciando torpedos publicitários da própria operadora. Num ato de revolta, só me resta matar todas essas pessoas.

Começo não respondendo os e-mails que me mandam – eu, tão cordato sempre, que até dou retorno a desconhecidos. Puxo o fio do telefone. Tranco a porta da biblioteca, mesmo sabendo que ninguém virá me incomodar aqui. Aliás, na porta da biblioteca há um desses avisos de hotel, com a ordem: “Favor não perturbar”. Coleciono estas papeletas, retiradas dos quartos alugados por onde passo. É o meu recado ao mundo: FAVOR NÃO INCOMODAR! É esta a inscrição que sonho ter em meu túmulo. Quem sabe lá, no além, seja possível a solidão eterna.

Sei que isso é quase uma ofensa. As pessoas se querem conectadas. Os celulares têm de tudo agora, de televisão a e-mails, e isso dá a sensação de que habitamos o presente em tempo real. Se estar conectado é fazer parte da vida, de vez em quando quero fazer parte da morte. Desligo o celular, mesmo sabendo que algumas pessoas ficarão chateadas com isso. Não atendo ao toque da campainha se estou sozinho em casa. Não ligo a tevê. Não ouço rádio. Não abro os jornais, que se acumulam intocados num canto qualquer.

Estou fora do mundo. Estou na biblioteca. Estou lendo um livro. Não quero saber de nada, se há louça suja na pia (logo eu, que odeio louça suja), se está na hora da comida, se isso ou se aquilo. Tudo perde a urgência. Há um caminho de letras para ser percorrido. Eu me deixo levar para as regiões mais longínquas no tempo e no espaço.

Para que serve um livro de literatura? – muitos se perguntam neste tempo em que tudo deve ter uma função. E para mim mesmo eu respondo. Um grande livro de ficção serve para anular o mundo. Para fazer dos assuntos mais falados no momento uma poeirinha cósmica que você nem percebe sobre os cabelos. Ao me trancafiar num livro, exerço meu direito mais sagrado, o de não pertencer ao meu tempo e ao meu lugar, o de não aceitar a existência das ordens do dia. 

Sou um sabotador. Digo NÃO a todas as tecnologias de interação. Fico com a coisa antiquada que é uma história impressa em papel, deixando-me perder por horizontes fictícios, condoendo-me do destino de personagens que não existiram, não aprendendo nenhum conceito que me ajude a parecer inteligente.Troco o convívio com os seres reais por este com figuras imaginárias. 

A literatura serve para eu me sentir dono absoluto de um tempo, de um mundo, de um destino, que é e não é meu.

Leio para anular o que me rodeia. Leio para provar que o tempo é maior do que presente. Leio porque não me bastam os prazeres do agora.

Enquanto estou lendo, não existo para o mundo. Não existo para o consumo. Não sonho com um novo modelo de carro. Com o último badulaque eletrônico. Não me escandalizo com mais uma denúncia de corrupção. Tudo se distancia. Ler literatura é se afastar das questões postas pelos donos do dia.

Então ler é se alienar – pode estar pensando alguém; alguém, logicamente, que não é leitor. E eu direi que acompanhar as notícias do dia, as inovações tecnológicas e a programação de lazer das massas é que é se alienar.

Eu me afasto de meu mundo imediato para poder vê-lo de outro ponto de vista, como se eu fosse um personagem do passado ou do futuro, do distante enfim, com um olhar que apequena tudo, que tira o poder de sedução das coisas fúteis e se fixa apenas naquilo que é essencial. Leio para entender o que é relevante no meu tempo. A leitura me dá esta visão em profundidade da experiência humana.

Quando abro um livro, fecho o mundo ao meu redor, tornando-o muito maior.
Miguel Sanches Neto (Transcrito de Gazeta do Povo)

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