quarta-feira, julho 23

O alcoviteiro

Fungos, ácaros, poeira, quem sabe, ratos – não é à toa que o gato se tornou o melhor amigo do sebista. Pode ser assustador para quem adora a assepsia de ambientes refrigerados, bem decorados segundo as novas técnicas de venda. Mas nenhuma modernidade pode superar o encanto de um sebo. São anos dentro de um deles. Todos guardam um feitiço de velho baú, de um sótão, onde crianças travessas vasculham as histórias secretas dos ancestrais. O velho álbum da família humana está naquelas empoeiradas prateleiras. Comerciante com um pouco de criança, afinal somos nós. Sempre prontos com uma história na ponta da língua, um olho arregalado para a nova remessa que pode trazer tesouros impensados, e os ouvidos atentos à caixa registradora.

Pode parecer um retrato assustador. Mas tenham calma, fregueses. Em nenhum outro lugar se encontra tanta vida concentrada pronta para ser levada para casa que uma flanela e uma escova não deixem em perfeito estado de uso. Entre em um desses velhos sebos. A História já estará a recebê-lo no umbral centenário. Visite prateleira por prateleira. Tire um livro aqui, outro ali. Se detenha naquela onde está o assunto que mais lhe interessar. Tenha certeza de que descobrirá o mundo que ficou ali à espera de você.

Os livros têm essa magia da paciência infinda. Numa estante, esperam talvez inúmeros anos só por você. Por mistérios desconhecidos, trafegaram em estradas, viajaram mares, frequentaram ambientes onde talvez você nunca estará. Um dia há o encontro. É o verdadeiro amor à primeira vista. Então o autor encontra seu irmão em outro idioma. É você, que ali, talvez mesmo passado um século, descobre o encanto do encontro. E o livreiro, onde fica nesse caso de amor? Ele é apenas o alcoviteiro, que passou anos entre aqueles seculares fungos e ácaros para guardar e vigiar um momento único.   

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