quarta-feira, abril 24

Leitura preguiçosa

 


Eu estava ali deitado

Eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer mesmo almoçar?

Eu falei que não quer comer nada? eu falei que não nem uma carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri mas falei que não estava com a menor fome nem uma coisinha meu filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos engraxados bonitos brilhantes.

Ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.

— Você precisa compreender isso, Carlos

— Não posso, Miriam

— Não daria certo

— Não daria certo?

— Nossos temperamentos não combinam

— Não é verdade

— Assim será melhor para nós dois

Não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não pode! ó meu Deus não pode.

Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei como é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer nada bem vai? Não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria eu gosto demais de você demais, demais.

Fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto.
Luiz Vilela

Saúde do cérebro: de jornais a livros

Assim como a atividade física regular é essencial para o corpo, o cérebro também precisa de um bom treino para se manter saudável. E a leitura de jornais, livros e revistas é um dos melhores exercícios para ele.

Diversos estudos científicos analisam os impactos de se manter o hábito da leitura. Trabalhos publicados nas últimas décadas mostram que ele não apenas é uma fonte de prazer, como previne o declínio cognitivo, doença de Alzheimer e outras formas de demência, reduz o estresse, gera mais empatia e impacta até mesmo na mortalidade de modo geral.

— A leitura demanda muita atenção, memória e raciocínio. E trabalha a parte de linguagem, de compreensão, vocabulário, o que também é muito positivo. Como consequência, é um estímulo robusto para criar uma reserva cognitiva, que é a capacidade do cérebro de se adaptar a lesões. Quem lê muito ao longo da vida cria mais circuitos neuronais, então tem vias alternativas para realizar uma determinada atividade quando há uma lesão, um desgaste, em alguma delas. Isso é muito estudado hoje — explica Raphael Spera, do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Por isso, numa era em que a maioria dos textos lidos fazem parte de postagens curtas e superficiais em redes sociais e aplicativos de mensagens, Elisa Resende, vice-coordenadora do departamento científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), destaca que se aprofundar em conteúdos mais longos, e com maior grau de complexidade, pode ser uma boa estratégia para trabalhar o cérebro.

— Ler jornais, por exemplo, pode ser muito importante, tanto para combater fake news como para a manutenção da saúde cerebral. Porque além de serem conteúdos que passaram por um crivo, são textos geralmente mais longos, que vão estimular mais o cérebro do que pequenos textinhos no WhastApp. Além de ser um estímulo por manter a pessoa atualizada. Então nós recomendamos muito para os pacientes — afirma a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para os especialistas, quanto mais complexa a leitura for, maior será o benefício. Anne Crunfli, psicóloga especializada em transtornos de ansiedade pela Escola de Medicina da USP, defende que o ideal é diversificar, passear por diferentes estilos de textos que abordem temas variados.

— Quanto mais diversa for a leitura, melhor para o desenvolvimento cultural da pessoa. A leitura não deve ser apenas para entreter, mas sim para se desenvolver, temas diferentes ampliam o olhar e promovem conexão entre assuntos, aumentando os aprendizados. A leitura qualitativa auxilia na construção do pensamento crítico, criativo. É um exercício saudável para o cérebro e para a socialização — garante.

O melhor efeito para a saúde, pontuam os especialistas, é na redução do risco de doenças neurodegenerativas a longo prazo. Um trabalho publicado na revista científica Neurology, em 2022, analisou 38 estudos sobre o tema e identificou que atividades intelectuais, como ler por prazer, estão associadas a um risco 23% menor de demência. Por outro lado, um trabalho da Universidade de Columbia, nos EUA, descobriu que a perda cognitiva é quase três vezes mais comum entre adultos analfabetos.

Mas mesmo quem já está em fases mais avançadas da vida pode se beneficiar de começar um hábito de leitura. Outro estudo, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, identificou que idosos que relataram ler frequentemente tiveram um declínio cognitivo mais lento do que aqueles que não liam.

— Eu sempre recomendo aos meus pacientes. Mesmo aqueles que têm quadros de demência, prejuízo cognitivo. Especialmente nas fases iniciais dessas doenças, nós vemos benefícios tanto nos aspectos cognitivos, como no psicológicos — diz Spera.

Ler também proporciona uma melhor saúde mental. Ainda em 2009, um estudo da Universidade de Sussex, no Reino Unido, já havia mostrado que o hábito reduz o estresse em 68%, mais do que o observado ao ouvir música ou fazer uma caminhada, por exemplo.

— A leitura permite que fujamos de picos de dopamina, o prazer imediato que já nos vem pronto com as redes sociais. Esse excesso de estímulos nos deixa mais impulsivos, nervosos. Já a leitura, gera o contrário, ela estimula o foco, a imaginação, o aprendizado, a resiliência, porque não vem pronta, é preciso empenho para traduzir as palavras em conceitos coerentes, que façam sentido. Com isso, diminui o estresse, diminuindo a frequência cardíaca e aliviando a tensão dos músculos durante o processo — detalha Crunfli.

Um dos impactos mais marcantes dessas repercussões fisiológicas é na mortalidade. Uma pesquisa da Universidade de Yale, nos EUA, acompanhou um grupo por 12 anos e descobriu que aqueles que passaram até 3,5 horas por semana lendo tiveram um risco 17% menor de morrer. Os que liam mais do que isso tinham 23% menos chances de morrer em comparação com os que não liam.

Outro efeito positivo observado nos estudos é o aumento da empatia. Ainda em 2013, pesquisadores da New School for Social Research, nos EUA, publicaram na prestigiosa Science experimentos que revelaram que “a leitura de ficção literária aprimora um conjunto de habilidades e processos de pensamento fundamentais para relacionamentos sociais complexos — e sociedades funcionais”.

— Os estudos mostram essa capacidade de ter mais empatia, de se colocar no lugar do outro, de se sensibilizar mais. Quando você lê, você tem diversos personagens, histórias diferentes, e você se coloca no lugar desses pontos de vista — avalia Spera.

Em relação ao quanto é necessário para atingir os benefícios, Resende lembra que “qualquer leitura já é considerada positiva. Assim como acontece com o exercício físico, alguma coisa já é melhor do que nada”.

Para quem nunca teve o hábito, ou está numa famosa “ressaca literária” – quando é difícil iniciar um novo livro após terminar uma história arrebatadora –, Crunfli sugere ir aos poucos:

— Tente um número pequeno de páginas e vá aumentando sucessivamente. Caso contrário, torna-se insustentável. O foco é construir o hábito da leitura, e para isso é necessário que seja feito aos poucos e de maneira contínua.

De acordo com os especialistas, o mesmo vale para o jornal: comece pela sua editoria preferida e vá abrindo o leque e explorando novos assuntos.

Há dias

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer:
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade, " Os Lugares do Lume"

Canção de homens e mulheres lamentáveis

Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.


Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
Antônio Maria, "Com vocês, Antônio Maria"

terça-feira, abril 23

Livros, para que servem?


 

Página de diário

Leiria, 14 de Fevereiro de 1941


Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui durante algum tempo , a ser junto deles em corpo o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que seria difícil exprimir, e que há-de ser a terra da sua duração.

Eram quatro vultos. Um homem e três mulheres. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como sonâmbulos, a tocar uma música que sugeria não sei que vida livre e maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Uma música lírica e trágica ao mesmo tempo, que inundava a tarde fria de calor e da palpitação de um poema.

À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que caminhava à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que o seguiam.

Ninguém poderá saber jamais se eram todas suas esposas, filhas ou mães. Sílfides intemporais, rufavam, batiam, martelavam e criavam à voltado solista e do hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de irrealidade.

Passavam. O próprio chão tremia. Passaram. As próprias pedras pareceram ficar com saudades.

E quando lá longe, nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, como que se extinguiu no céu morto da cidade o clarão de uma estrela-cadente.

Miguel Torga, "Diário I"

A balada do falso Messias

Vai pôr vinho no copo. Suas mãos agora estão enrugadas e tremem. Mas ainda me impressionam, essas mãos grandes e fortes. Comparo-as com as minhas, de dedos curtos e grossos, e admito que nunca o compreendi e nunca chegarei a compreendê-lo.

Encontrei-o pela primeira vez a bordo do Zemlia. Nesse velho navio, nós, judeus, estávamos deixando a Rússia; temíamos os pogroms. Acenavam-nos com a promessa da América e para lá viajávamos, comprimidos na terceira classe. Chorávamos e vomitávamos, naquele ano de 1906. Eles já estavam no navio, quando embarcamos. Shabtai Zvi e Natan de Gaza. Nós os evitávamos. Sabíamos que eram judeus, mas nós, da Rússia, somos desconfiados. Não gostamos de quem é ainda mais oriental do que nós. E Shabtai Zvi era de Esmirna, na Ásia Menor — o que se notava por sua pele morena e seus olhos escuros. O capitão nos contou que ele era de uma família muito rica. De fato, ele e
Natan de Gaza ocupavam o único camarote decente do barco. Então, por que iam para a América? Por que fugiam? Perguntas sem resposta. Natan de Gaza, um homem pequeno e trigueiro, despertava-nos particularmente a curiosidade. Nunca tínhamos visto um judeu da Palestina de Eretz Israel — uma terra que para muitos de nós só existia em sonhos. Natan, um orador eloquente, falava para um público atento sobre as suaves colinas da Galileia, o belo lago Kineret, a histórica cidade de Gaza, onde ele nascera, e cujas portas Sansão tinha arrancado.

Bêbado, porém, amaldiçoava a terra natal: “Pedras e areia, camelos, árabes ladrões...”. Ao largo das ilhas Canárias, Shabtai Zvi surpreendeu-o maldizendo Eretz Israel. Surrou-o até deixá-lo caído no chão, sangrando; quando Natan ousou protestar, demoliu-o com um último pontapé.

Depois disso passou dias trancado no camarote, sem falar com ninguém. Passando por ali ouvíamos gemidos... e suspiros... e suaves canções. Uma madrugada acordamos com os gritos dos marinheiros. Corremos ao convés e lá estava Shabtai Zvi nadando no mar gélido. Baixaram um escaler e a custo conseguiram tirá-Lo da água. Estava completamente nu e assim passou por nós, de cabeça erguida, sem nos olhar — e foi se fechar no camarote. Natan de Gaza disse que o banho fora uma penitência, mas nossa conclusão foi diferente: “É louco, o turco”.

Chegamos à ilha das Flores, no Rio de Janeiro, e de lá viajamos para Erexim, de onde fomos levados em carroções para os nossos novos lares, na colônia denominada Barão Franck, em homenagem ao filantropo austríaco que patrocinara nossa vinda. Éramos muito gratos a este homem que, aliás, nunca chegamos a conhecer. Alguns diziam que nas terras em que estávamos sendo instalados mais tarde passaria uma ferrovia, cujas ações o barão tinha interesse em valorizar. Não acredito. Acho que era um bom homem, nada mais. Deu a cada família um lote de terra, uma casa de madeira, instrumentos agrícolas, animais. Shabtai Zvi e Natan de Gaza continuavam conosco. Receberam uma casa, embora ao representante do barão não agradasse a ideia de ver os dois juntos sob o mesmo teto.

— Precisamos de famílias — disse incisivamente — e não de gente esquisita.
Shabtai Zvi olhou-o. Era tal a força daquele olhar que ficamos paralisados. O agente do barão estremeceu, despediu-se de nós e partiu apressadamente.

Lançamo-nos ao trabalho.

Como era dura a vida rural! A derrubada de árvores. A lavra. A semeadura... Nossas mãos se enchiam de calos de sangue.

Durante meses não vimos Shabtai Zvi. Estava trancado em casa. Aparentemente o dinheiro tinha acabado, porque Natan de Gaza perambulava pela vila, pedindo roupas e comida. Anunciava para breve o ressurgimento de Shabtai Zvi trazendo boas novas para toda a população. — Mas o que é que ele está fazendo? — perguntávamos.

O que estava fazendo? Estudava. Estudava a Cabala, a obra-prima do misticismo judaico: o Livro da Criação, o Livro do Brilho, o Livro do Esplendor. O ocultismo. A metempsicose. A demonologia. O poder dos nomes (os nomes podem esconjurar demônios; quem conhece o poder dos nomes pode andar sobre a água sem molhar os pés; e isso sem falar da força do nome secreto, inefável e impronunciável de Deus). A ciência misteriosa das letras e dos números (as letras são números e os números são letras; os números têm poderes mágicos; quanto às letras, são os degraus da sabedoria). É então que surge em Barão Franck o bandido Chico Diabo. Vem da fronteira com seus ferozes sequazes. Fugindo dos “Abas Largas”, esconde-se perto da colônia. E rouba, e destrói, e debocha. Rindo, mata nossos touros, arranca-lhes os testículos, e come-os, levemente tostados. E ameaça matar-nos a todos se o denunciarmos às autoridades. Como se não bastasse esse infortúnio, cai uma chuva de granizo que arrasa as plantações de trigo. Estamos imersos no mais profundo desespero quando Shabtai Zvi reaparece.

Está transfigurado. O jejum devastou-lhe o corpo robusto, os ombros estão caídos. A barba agora, estranhamente grisalha, chega à metade do peito. A santidade envolve-o, brilha em seu olhar.

Caminha lentamente até o fim da rua principal... Nós largamos nossas ferramentas, nós saímos de nossas casas, nós o seguimos. De pé sobre um montículo de terra, Shabtai Zvi nos fala.

— Castigo divino cai sobre vós!

Referia-se a Chico Diabo e ao granizo. Tínhamos atraído a ira de Deus. E o que poderíamos fazer para expiar nossos pecados?

— Devemos abandonar tudo: as casas; as lavouras; a escola; a sinagoga; construiremos, nós mesmos, um navio — o casco com a madeira de nossas casas, as velas com os nossos xales de oração. Atravessaremos o mar. Chegaremos à Palestina, a Eretz Israel; e lá, na santa e antiga cidade de Sfat, construiremos um grande templo.

— E aguardaremos lá a chegada do Messias? — perguntou alguém com voz trêmula. — O Messias já chegou! — gritou Natan de Gaza.

— O Messias está aqui! O Messias é o nosso Shabtai Zvi!

Shabtai Zvi abriu o manto em que se enrolava. Recuamos, horrorizados. Víamos um corpo nu, coberto de cicatrizes; no ventre, um cinturão eriçado de pregos, cujas pontas enterravam-se na carne. Desde aquele dia não trabalhamos mais. O granizo que destruísse as plantações. Chico Diabo que roubasse os animais, porque nós íamos embora. Derrubávamos as casas, jubilosos. As mulheres costuravam panos para fazer as velas do barco. As crianças colhiam frutas silvestres para fazer conservas. Natan de Gaza recolhia dinheiro para, segundo dizia, subornar os potentados turcos que dominavam a Terra Santa.

— O que está acontecendo com os judeus? — perguntavam-se os colonos da região. Tão intrigados estavam que pediram ao padre Batistella para investigar. O padre veio ver-nos; sabia de nossas dificuldades, estava disposto a nos ajudar.

— Não precisamos, padre — respondemos com toda a sinceridade. — Nosso Messias chegou; ele nos libertará, nos fará felizes.

— O Messias? — o padre estava assombrado. — O Messias já passou pela terra. Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e morreu na cruz por nossos pecados.

— Cala-te, padre! — gritou Santa. — O Messias é Shabtai Zvi! Santa, filha adotiva do gordo Leib Rubin, perdera os pais num pogrom. Ficara então com a mente abalada. Seguia Shabtai Zvi por toda a parte, convencida de que era a esposa reservada para o Ungido do Senhor. E para surpresa nossa Shabtai Zvi aceitou-a: casaram-se no dia em que terminamos o casco do barco. Quanto à embarcação, ficou muito boa; pretendíamos levá-la ao mar, como Bento Gonçalves transportara seu navio, sobre uma grande carreta puxada por bois.

Estes já eram poucos. Chico Diabo aparecia agora todas as semanas, roubando duas ou três cabeças de cada vez. Alguns falavam em enfrentar os bandidos. Shabtai Zvi não aprovava a ideia. “Nosso reino está além do mar. E Deus vela por nós. Ele providenciará.”

De fato: Chico Diabo desapareceu. Durante duas semanas trabalhamos em paz, ultimando os preparativos para a partida. Então, num sábado pela manhã, um cavaleiro entrou a galope na vila. Era Gumercindo, lugar-tenente de Chico Diabo.

— Chico Diabo está doente! — gritou, sem descer do cavalo. — Está muito mal. O doutor não acerta com o tratamento. Chico Diabo me mandou levar o santo de vocês para curar ele.

Nós o rodeávamos em silêncio.

— E se ele não quiser ir — continuou Gumercindo — é para nós queimar a vila toda. Ouviram?

— Eu vou — bradou uma voz forte.

Era Shabtai Zvi. Abrimos caminho para ele. Aproximou-se lentamente, encarando o bandoleiro.

— Apeia.

Gumercindo desceu do cavalo. Shabtai Zvi montou.

— Vai na frente, correndo.

Foram os três: primeiro Gumercindo, correndo; depois Shabtai Zvi a cavalo; e fechando o cortejo, Natan de Gaza montado num jumento. Santa também quis ir mas Leib Rubin não deixou.

Ficamos reunidos na escola todo o dia. Não falávamos; nossa angústia era demasiada. Quando caiu a noite ouvimos o trote de um cavalo. Corremos para a porta. Era Natan de Gaza, esbaforido.

— Quando chegamos lá — contou — encontramos Chico Diabo deitado no chão. Perto dele, um curandeiro fazia mandingas. Shabtai Zvi sentou perto do bandido. Não disse nada, não fez nada, não tocou no homem — só ficou olhando. Chico Diabo levantou a cabeça, olhou para Shabtai Zvi, deu um grito e morreu. O curandeiro, eles mataram ali mesmo. De Shabtai Zvi nada sei. Vim aqui avisar: correi, fugi!

Metemo-nos nas carroças e fugimos para Erexim. Santa teve de ir à força. No dia seguinte, Leib Rubin nos reuniu.

— Não sei o que vocês estão pensando em fazer — disse — mas eu já estou cheio dessas histórias todas: Barão Franck, Palestina, Sfat... Eu vou é para Porto Alegre. Querem ir comigo?

— E Shabtai Zvi? — perguntou Natan de Gaza com voz trêmula (era remorso o que ele sentia?).

— Ele que vá para o diabo, aquele louco! — berrou Leib Rubin. — Só trouxe desgraças!

— Não fale assim, pai! — gritou Santa. — Ele é o Messias.

— Que Messias, nada! Acaba com essa história, isso ainda vai provocar os anti-semitas. Não ouviste o que o padre disse? O Messias já veio, está bom?

Transformou a água em vinho e outras coisas. E nós vamos embora. O teu marido, se ainda está vivo, e se ficou bom da cabeça, que venha atrás. Eu tenho obrigação de cuidar de ti, e vou cuidar de ti, com marido ou sem marido!
Viajamos para Porto Alegre. Judeus bondosos nos hospedaram. E para nossa surpresa, Shabtai Zvi apareceu uns dias depois. Trouxeram-no os “Abas Largas”, que haviam prendido todo o bando de Chico Diabo.

Um dos soldados nos contou que haviam encontrado Shabtai Zvi sentado numa pedra, olhando para o corpo de Chico Diabo. Espalhados pelo chão — os bandidos, bêbados, roncando. Havia bois carneados por toda a parte. E vinho. “Nunca vi tanto vinho!” Tudo o que antes tinha água agora tinha vinho! Garrafas, cantis, baldes, bacias, barricas. As águas de um charco ali perto estavam vermelhas. Não sei se era sangue das reses ou vinho. Mas acho que era vinho.

Ajudado por um parente rico, Leib Rubin se estabeleceu com uma loja de fazendas. Depois passou para o ramo de imóveis e posteriormente abriu uma financeira, reunindo grande fortuna. Shabtai Zvi trabalhava numa de suas firmas, da qual eu também era empregado. Natan de Gaza envolveu-se em contrabando, teve de fugir e nunca mais foi visto.

Desde a morte de Santa, Shabtai Zvi e eu costumamos nos encontrar num bar para tomar vinho. E ali ficamos toda a noite. Ele fala pouco e eu também; ele serve o vinho e bebemos em silêncio. Perto da meia-noite ele fecha os olhos, estende as mãos sobre o copo e murmura palavras em hebraico (ou em aramaico, ou em ladino). O vinho se transforma em água. O dono do bar acha que é apenas um truque. Quanto a mim, tenho minhas dúvidas.
Moacyr Scliar, "Os cem melhores contos brasileiros do século"

A mal-amada

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim.

Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões — ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc.

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê, da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.


Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira, Viva a língua brasileira! dança na corda bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim. Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões
— ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc. 

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê,da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.

Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira,Viva a língua brasileira! dança na corda  bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

Mas se você se orgulha de ser um falante nativo da língua de Carlos, Clarice, Chico e Clementina, se compreende o valor de respirar dia e noite o sexto idioma do mundo em número de falantes e o terceiro nas redes sociais — bem, parece que nós falamos a mesma língua.

Digamos que, além disso, você se aborrece quando ouve algum bobo dizer que breakfasts são mais saborosos que cafés da manhã, pois sabe que o ultraconservadorismo é uma furada e que devemos dar boas-vindas a estrangeirismos e outras inovações, mas sem perder o senso de ridículo jamais.

Nesse caso, não resta dúvida: você acaba de encontrar sua turma.

Boa viagem!
Sérgio Rodrigues, "Viva a língua brasileira!"

Um livro

Um livro é assim como um filho,
que lançamos, indefeso, às feras.
Tentámos, com amor, dar-lhe brilho
e, às vezes, elegância de pantera.

Tivemos insónias e também dores,
faltámos a deveres e encontros,
sempre em favor daqueles fervores,
que se alimentam de desencontros.

Um livro constrói-se com emoção,
mas também com cálculo e razão.
Junte-se a isso, enorme esforço,

de que a alegria é um reforço.
É filho com que nos preocupamos
e de quem, por vezes, nos orgulhamos.

Eugénio Lisboa

segunda-feira, abril 22

Leitura à sombra

 


Ó jardins

Ó jardins enfurecidos,
pensamentos palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente frequentado:
onde o mistério maior
do sol da luz da saúde?

João Cabral de Melo Neto, "Antologia Poética"

O meu mais belo começo de romance

Sempre pensei que o destino de um romance se decide na frase que lhe serve de começo. São justamente célebres e inesquecíveis os começos de Le Rouge et le Noir, de La Chartreuse de Parme (ambos de Stendhal), de Ana Karenina ( Tolstoi) ou de Du Côté de Chez Swan (de Proust). Podia dar muitos outros exemplos. “Todas as famílias felizes se assemelham mas cada família infeliz é-o à sua própria maneira”,dizia Tolstoi, a abrir a Karenina – e logo nos deixa sonhadores: aconchegamo-nos melhor no sofá, para nos prepararmos, com delícia, para as soberbas infelicidades que se anunciam... Como vai ser interessante! Com um começo destes... Ou então, isto: “No dia 15 de Maio, o general Bonaparte fez a sua entrada em Milão, à frente daquele jovem exército que acabava de atravessar a ponte de Lodi e de anunciar ao mundo que, depois de tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor.” Que leitor pode deparar com isto sem sentir que se levanta do chão? Sem sentir um mundo prenhe de promessas que o grande romance de Stendhal – La Chartreuse de Parme – não irá senão confirmar e reconfirmar ad omnia saecula saeculorum? Régio costumava dizer, em conversa, que quem encontra um título encontra um livro. A minha tese pode ser outra: quem encontra um bom começo encontra um bom livro. Tive sempre receio de começar um livro, um artigo, um ensaio, um poema, sem ter a prévia sensação de que achara, para eles, um bom começo ou, para empregar uma expressão popular, de que entrara com o pé direito. Hemingway tem começos memoráveis e eu imagino o trabalho e as tentativas sucessivas que ensaiou até chegar a começos de uma simplicidade pungente, escorrida e trágica, como são os de tantas das suas célebres narrativas.

Ando agora a agenciar munições para umas memórias1 que quero escrever antes de, para sempre, fechar a oficina. Vou inventariando acontecimentos, emoções, sítios, pessoas, datas, encontros, ideias, desencontros, alegrias, tristezas, esperanças, desilusões, descobertas... Procuro reerguer, com o vigor que me for possível, todo um mundo interior que gostaria de tornar importante, não por eu ter estado nele, mas por ele ter estado em mim – eu, veículo, sem importância, de magias que são importantes. Como me é peculiar, começou por me devorar a angústia de encontrar um bom começo. E logo me ocorreu o que para mim tem sido o mais belo começo de romance, aquele que, nos meus catorze ou quinze anos, me agarrou para sempre e me grudou ao seu encanto anunciador de delícias-a-haver: refiro-me à primeira frase, do primeiro capítulo do romance de Stendhal, Le Rouge et le Noir : “A cidadezinha de Verrières pode ser considerada uma das mais lindas do Franco-Condado”. Este acorde, em que a simplicidade rivaliza com a beleza premonitória, gravou-se para sempre no meu espírito e no meu coração. E fiquei sempre convencido de que só ele teria competência para me levar até à minha insaciada paixão pela Senhora de Rênal. Permaneceu em mim, espécie de canto profundo e mozartiano, propiciador de tudo quanto na vida há de mais fundo, de mais belo e de mais trágico. Pensei, portanto, que uma pequena paráfrase dele me garantiria, melhor do que qualquer outra alternativa, o começo (auspicioso) das minhas memórias. Ficará assim: “A cidadezinha de Lourenço Marques pode ser considerada uma das mais lindas do continente africano.” Assim amparado na bengalinha sortílega do que considero o mais belo começo de romance, espero salvar do esquecimento rápido, não o total das minhas memórias, mas, ao menos, a sua primeira frase.

quinta-feira, abril 18

Em boa companhia

 


Mãozinhas de seda

Para Octávio Ianni

Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana é dizer o que se pensa. Meu bisavô, vigilante, puxava da algibeira esta moeda antiga: “A diplomacia é a ciência dos sábios”. Era um ancião que calçava botinas de pelica, camisa de tricolina com riscas claras em fio da Escócia, e gravata escolhida a dedo, em que uma ponta de cor volúvel marcava a austeridade da casimira inglesa. Não dispensava o colete, a corrente do relógio de bolso desenhando no peito escuro um brilhante e enorme anzol de ouro. E o jasmim, ah, o jasmim! Um botão branco de aroma oriental sempre bem-comportado na casa da lapela. E era antes um ritual de elegância quando ajustava os óculos sobre o nariz: a mão quase em concha subia sem pressa até prender um dos aros entre o polegar e o indicador, retendo demoradamente os dedos no metal enquanto testava o foco das lentes. Neste exato momento, seu olhar ia longe, muito longe, como se vislumbrasse meu futuro distante. Talvez fosse essa antevisão que fizesse surgir o esgar fértil no canto dos lábios, era como se ele tivesse acabado de plantar ali a semente provável de um grande regozijo, daí que me puxava pela cabeça e soprava no meu ouvido:

“O negócio é fazer média”, e enfatizava a palavra negócio.

Apesar da postura solene, o bisavô, quem diria?, era chegado numa gíria. Tão vetusto, tão novíssimo, era precursor:

“Nada de porraloquice. Me promete”.

Nesse tempo, em Pindorama, mais precisamente a cada mês de setembro, sempre acontecia o Baile da Primavera. Era um baile a rigor, terno e gravata, vestidos longos, e geralmente abrilhantado pela Orquestra de Jaboticabal, fartamente anunciada como garantia de sucesso, pois gozava de grande prestígio na execução de valsas e boleros. Nesses setembros, os dias eram claros, o céu liso, “um céu de vidro” como se dizia, e a temperatura poderia ser considerada amena para a região, apesar de já prenunciar o calorão dos meses seguintes. Era um tempo propício pra tagarelar, principalmente nos finzinhos de tarde, depois da janta, quando as famílias puxavam cadeiras pras calçadas, a que se juntavam vizinhos e amigos. E ficavam rindo gostosamente à toa, jogando conversa fora, assegurando entusiasmo à algazarra das crianças. Eram risos, vozes e pequenos gritos, tudo amortecido pela amplidão do espaço livre, até que “a fresca da noite” e o sono os dispersassem.

Entre as mulheres, por semanas se falava em organza, tule, cetim, tafetá, e em tantas outras fazendas finas, entregues aos cuidados de costureiras nervosas com a quantidade das encomendas. E era também inevitável vazar o mexerico de que a Mercedes, a Rosa Stocco, ou a Brígida, enfim, uma das moças da cidade iria escandalizar com o decote ousado do vestido, e, diga-se, a cada ano mais atrevido. Esbanjavam-se ainda comentários contidos, às vezes nem tanto, sobre a perspectiva casadoura que o evento abria generoso. Mas só dias antes do baile, apesar de curtido por semanas e semanas, é que as moças de Pindorama iam às farmácias e, entre acanhadas e ar distraído, davam fim ao estoque de pedra-pomes. Era uma pedra cinza e porosa, vendida em tamanho pouco maior que um ovo de galinha, embora amorfa, que elas friccionavam na palma das mãos para eliminar as calosidades. E se aplicavam no trato da pele de tal modo que seus eventuais parceiros, durante o baile, tivessem a sensação de tomar entre suas mãos de príncipes encantados verdadeiras mãozinhas de seda de suas donzelas.

Se era assim no baile, em que românticos mancebos se alumbravam com um simples toque de mãos, capaz de transportá-los para fantasias inefáveis, imagine-se agora — nestes tempos largos e tão liberais — se mãozinhas de seda, mesmo quando de homem barbado, se insinuassem até as partes pudendas de alguém, fossem essas partes pretas, roxas, ou de cor ainda a ser declinada… Seria o êxtase!

“Nada de porraloquice. Me promete.”

Daí minha mania, se esbarro com certos intelectuais, de olhar primeiro para suas mãos, mas não só. Tenho até passado por algum constrangimento, pois me encaram com um viés torto e um tanto acanalhado, se, como bom empirista, demoro demais no aperto de mão. Que fazer? Mania é mania. Seja como for, apesar de avessos a bailes e afetarem desdém pelas coisas mundanas, o que tenho notado é que alguns deles parecem fazer uso intensivo de pedra-pomes, ainda que pudessem dispensá-la. E com a diferença também de que as moças de Pindorama, que só usavam essa pedra uma vez por ano, davam em geral duro no trabalho. Eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto! Em consequência desse aparente paradoxo, tenho notado que estão entregues a um escandaloso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia, Maria Santíssimama!, quando o troca-troca em Pindorama, picante e clandestino, era bem mais interessante. Daí que aquela pedra nostálgica, que antes era só pomes e se compunha com devaneios de mancebos e donzelas, acabou virando a pedra angular do mercado de ideias.

Schopenhauer, coitado, é que dizia amargurado: respeito os negociantes porque passeiam de rosto descoberto, apresentando-se como são, quando abrem as portas do seu comércio. Mas era ingênuo esse Schopenhauer, não sacava bem as coisas, estava por fora com sua carranca, não sabia desfrutar os doces encantos da vida e, mais que tudo, nunca levou em conta a comovente precariedade da espécie. Se bem que, mesmo precária, certos espécimes não precisavam exagerar. Aqui entre nós, pra que ir tão longe, pra que falar tanto em ética? Ponderando bem as coisas, não devemos ser duros com eles, afinal, se vai uma ponta de bravata naquela jactância toda, vai também uma carrada de candura quando metem a colher na caldeira dos valores, cutucando a menina dos olhos do capeta com vara curta, sem suspeitarem que é nessa mesma caldeira que se cozinham os impostores. Ponderando ainda em outra direção e, como dizia o bisavô, “é tudo uma questão de boa vontade”, não há por que censurá-los, devemos a eles até gratidão, afinal aqueles imaculados não deixam de contribuir de modo exemplar ao ilustrarem a versão mais acabada do humanissimus humanus. Penso que só pecariam... pecariam?

O bisavô é que sabia das coisas, não improvisava, punha milênios em cada palavra e, conciso como só ele, foi ao ponto:

“Foda-se o que a gente pensa.”

Talvez o negócio seja fazer média, o negócio é mesmo fazer média, o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página.

Custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata, cumprindo à risca a antevisão de regozijo do bisavô, que continua por sinal mais vivo do que nunca, rindo às gargalhadas na surdina, e com quem divido agora a parafernália e o guarda-roupa, zeloso com a antiga indumentária, pisando macio minhas botinas de pelica, testando o foco das lentes, usando colete, relógio de bolso, jasmim.

(Saudades de mim!)
Raduan Nassar, "Obra Completa"

O jaardineiro

Só colhia as rosas ao anoitecer porque durante o sono elas sentiam o aço frio da tesoura. Uma noite ele sonhou que cortava as hastes de manhã, em pleno sol, as rosas despertas e gritando e sangrando na altura do corte das cabeças decepadas. Quando ele acordou, viu que estava com as mãos sujas de sangue.

Lygia Fagundes Telles

Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O´Neill

A mudança

Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou. Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia-se, o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados. Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes. Precocemente envelhecido como a mulher, sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável. Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa. Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso saudável, de bem-estar com a vida.

Até quando suportar aquela fronte tocada de orgulho? Fraturas e feridas, riscava.

Daí para a incompreensão da mulher, houve repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio, em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento.

Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele.

As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

Mostrava-se arrasado. A última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados.

Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum ausente, traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes o desconforto.

segunda-feira, abril 15

Cuidado com o 'carrasco'


 

A palavra

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,

mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade, "A Paixão Medida"